Os navios no Tejo
Breve referência aos navios nas imagens de Lisboa no século XVI
“Lá onde o Tejo lava a grã cidade,
Qu’em toda a Christandade espanta, &
soa,
Eu digo a alta Lisboa do Occidente
Raynha, & do oriente:” [1]
Na análise destas vistas, comecemos pelo Tejo e palas embarcações que nele estão representadas.
De facto, em todas estas vistas de Lisboa é destacado o rio Tejo onde numerosas e diversas embarcações, procuram afirmar a cidade como o grande (o maior?) porto peninsular e a sua importância para a navegação atlântica.
Camões descreve os barcos que no Tejo navegam.
“Vejo o puro, suave e brando Tejo,
com as côncovas barcas,
que, nadando,
vão pondo em doce efeito seu desejo.
Uas co’ brando vento
navegando,
outras cos leves remos,
brandamente
as cristalinas águas apartando.” [2]
E Sá de Miranda sublinha que:
“Vereis barcos ir à
vella,
Huns que vão outros que
vem,
Como que se desavem,
Com hua viração singela
Tanta força, & arte tem.” [3]
Do lado de Espanha é assinalada a importância de Lisboa como cidade portuária e a diversidade das embarcações que no Tejo navegam.
Pedro de Medina (c.1493-c.1567) no seu livro Grandezas y cosas memorables de España
de 1548, refere: “En el puerto
desta ciudad ay sempre grãde numero de
naos, y otros muchos navios, vasos de todas suertes, y gête de todas
naciones, por ser el mas principal
puerto de España, y
aun uno de los principales del mundo, al qual concurre gran multitude de
navios. Es puerto muy seguro hecho de la misma boca del rio Tajo, que tiene
três léguas de ancho.” [4]
E Bartholomé de Villalba y Estaña (1548-1605?), em El Pelegrino curioso y Grandezas de España descreve a diversidade de embarcações, entre as quais destaca as grandes naus que vêm da Índia e as actividades ligadas à navegação e ao comércio dos produtos (e escravos) da Ilha da Madeira e da Índia, na Ribeira de Lisboa.
“(…) ansi la falda del rio adelante fué viendo las naves tan ordinarias en aquel puerto, galeras, bateles, caravelas, bergantines, barcas, fustas, esquifes, que os da gusto ver tanto genero de navíos. Vió en su presencia llegar cinco naves de las Indias Ocidentales con gran cantidad de especias, de clavos, canela, pimienta, que esto es la mayor grandeza de su rey. Verdad es que de la Isla de la Madera le traen gran suma de pipotes, de todas conservas y otras cosas muy delicadas, de más de los negros que allí aportan de Marigongo y otras provincias. Hay, pues, en este espacio gran numero de maestros, unos haziendo vageles, otros calafateando; unos despalman, otros ensevan; más adelante hazen pipas, botas, toneles.” [5]
[1] António
Ferreira (1528-1569), Archigamia Egloga I, Poemas Luzitanos do Doutor Antonio
Ferreira. Dedicados por seu filho Miguel Leite Ferreira, ao Principe D. Philippe
nosso senhor. Impresso com licença, Por Pedro Crasbeeck. Em Lisboa M. D.
XCVIII. (pág. 71 v.).
[2] Luís de
Camões, Elegia III. Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão, Editores. Porto
1970. (pág.406).
[3] Francisco
de Sá de Miranda (1481-1558), Carta II a António Pereira senhor de Basto in As
Obras do Doutor Francisco de Saa de Miranda, a custa de Antonio leite, Mercador
de livros, na rua nova. Lisboa M DC LXXXVII. (pág. 215).
[4] Pedro
de Medina (c.1493-c.1567), Libro
d[e] grandezas y cosas memorables de España. Agora de nuevo hecho y copilado
por el Maestro Pedro de Medina vezino de Sevilla. Dirigido al Serenissimo y
muy esclarecido Señor D. Filipe Principe de España.e Nuestro Señor. En casa de
Dominico d[e] Robertis. Sevilla. M D XL VIII. (pág. 24).
[5] Bartholome de Villalba y Estaña (1548-1605?), El pelegrino curioso y grandezas de España 1577, por Bartholomé Villalba y Estañá. publícalo la Sociedad de Bibliófilos Españoles; Imprenta de Miguel Ginesta Madrid 1886-1889. Biblioteca Digital Hispánica (Tomo II, pág.90).
A nau d’amores. O valor simbólico da nau.
Em Janeiro de 1527, Gil Vicente, com o intuito de
celebrar regresso que D. João III e Dona Catarina, na sua chegada solene à
cidade de Lisboa, produziu “A
tragicomedia seguinte he chamada Nao
damores. Representouse ao muyto poderoso Rey dom Ioam o terceyro aa entrada
da esclarecida & muy catholica Raynha Dona Caterina nossa Senhora, em a cidade
de Lixboa. Era de M. D. XXVII.” [1]
Na peça, a personagem Príncipe da Normandia pede uma
embarcação a “uma princesa em figura da Cidade de Lixboa”.
Esta responde que a embarcação disponível, é a nau de São Vicente, que pertence à Coroa:
“Pera o que mereceis
senhor pouco me pedis,
inda que a Nao que quereis
val mais que todo Paris
como vós sey que sabeis.
Porem eu fora contente
mas essa Nao nam he minha
porque
foy de sam Vicente
& he del Rey & da Raynha…” [2]
O Príncipe da Normandia pede então para construir uma nau, que se chamará nau d’amores, nos estaleiros de Lisboa que então são conhecidos por fabricar os melhores navios.
“Por remedio
de mis Dolores
dadme
licencia entera
que se haga
uma Nao damores
aqui en vuestra Ribera
Dose hazen las mejores.” [3]
A nau que se chamará Nau d’amores, é então descrita pelo Príncipe numa longa fala, em que se enumeram os materiais e as componentes da nau identificadas com os encantos e desencantos do amor.
“Ha de ser
desta manera
Para navegar
segura,
La voluntad la madera
Y la razon plegadura
Dorada toda de fuera.
Las estopas de recelos
Bincados de
diez en diez
Y los castillos de celos
Y la
tristeza la pez
Tanta que
cubran los cielos.
El mastel de fee segura
Y la vela desperança,
La gavea de hermosura
El traquete de lembrança,
La mezena de dulçura.” [4]
[1] Gil
Vicente(c.1465-c.1536), Naodamores,in
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco Livros.
Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam
Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro terceiro,
pág. CLXV).
[2] Gil
Vicente(c.1465-c.1536), Naodamores,in
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco Livros.
Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam
Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro terceiro,
pág. CLXVII).
[3] Gil
Vicente (c.1465-c.1536), Não damores, in Copilaçam de todalas obras de Gil
Vicente, a qual se reparte em cinco Livros. Empremiose em a muy nobre, &
sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam Alvarez impressor del Rey nosso
senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro terceiro, pág. CLXVII).
[4] Gil
Vicente (c.1465-c.1536), Não damores,
in Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco
Livros. Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa
de Ioam Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro
terceiro, pág. CLXVII).
As embarcações na Crónica de D. Afonso Henriques
As naus dos finais do século XVI eram navios de grande calado, de três e quatro mastros, com aparelhos redondos e velas latinas, altos castelos de popa, aptos para transporte de grandes cargas, mas, simultaneamente, prontos para combates navais.
Na imagem do início de Quinhentos, da Crónica de D. Afonso Henriques, entre duas naus navegam 3 caravelas latinas de dois mastros, utilizadas em viagens de médio curso ou como apoio a armadas de naus ou galeões. Estão representadas duas sétias (galés) e diversos bergantins.
fig. 11
– Pormenor do frontispício da Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido
Príncipe D. Afonso Henriques, Primeiro Rey de Portugal. 1508.
Na Genealogia dos Reis de Portugal
fig. 12 - Simon Bening (1483 – 1561) e António d’Olanda (1480-c.1558?), Pormenor de Tavoa Primeira dos Reys, Tronco do conde D. Anrique, 1530/34, Fólio 7r da "Genealogia dos Reis de Portugal", MS. 12531, British Library.
À esquerda, duas naus vistas de proa e de popa, as
velas enfunadas.
Duas galés.
Três naus com o velame recolhido.
Uma embarcação com um só mastro.
Duas caravelas com duas latinas e uma com apenas
uma latina.
As embarcações no Prospecto de Lisboa da Biblioteca de Leiden
No Prospecto de Lisboa o anónimo autor desenha, com minuciosos detalhes, as naus que navegam ou estão ancoradas no Tejo, por entre outras embarcações menores.
fig. 13 – Anónimo. Prospecto de Lisboa c.1530, com as embarcações numeradas de 1 a 9, sobre o desenho em 17 folhas, pena e aguada, cor, 75 x 245 cm. Leiden University Libraries.
As embarcações da esquerda para a direita:
1 - Uma nau, vista de bombordo, ancorada e com o velame recolhido.
fig. 14 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
2 – Uma nau ancorada vista pela proa.
fig. 15 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
3 – Outra nau, vista de bombordo, com o velame recolhido.
fig. 16 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
4 – Uma nau navegando a todo o pano, na direcção
do espectador.
fig. 17 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
5 – Uma nau ancorada vista de perfil e onde
marinheiros se ocupam da sua manutenção.
fig. 18
- Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
6 – Uma nau navegando, a todo o pano, rumo ao sul.
fig. 19 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
7 – Uma nau, fortemente armada, vista de bombordo
e navegando, a todo o pano, para poente.
fig. 20 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
8 – Outra nau, onde também se notam os canhões, navegando
a todo o pano, hasteando a bandeira portuguesa.
fig. 21 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
9 – A Vista de lisboa da Biblioteca de Leiden
mostra ainda uma caravela latina de três mastros, armada com peças de fogo.
fig. 22 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.
A nau Santa Catarina de Monte Sinai
Para melhor se compreender os navios desta época, uma conhecida pintura de Joachim Patinir (c.1480-1524), em que se vê, em primeiro plano, à popa e em pormenor, uma nau dos finais do século XV e início do século XVI, com todo seu velame.
fig. 23 - Joachim Patinir (c.1480-1524), Portuguese carracks off a rocky coast c. 1540 National Maritime Museum Greenwich London.
Esta nau das Índias seria a Santa Catarina de Monte Sinai, rodeada por três outras naus e uma galé, no que se julga ser o desembarque em Nizza (Nice), em 1521, da princesa Beatriz de Portugal (1504-1538) filha de D. Manuel I, que embarcou no Santa Catarina do Monte Sinai para o seu casamento com Carlos III o Bom, (1486-1553), Duque de Sabóia de 1504 a 1553.
Garcia de Resende refere e situa no tempo a partida de D. Beatriz, em 1521.
“E ao sabado polla manhã dia de sam Lourenço
dez dias do dito mes dagosto do dito anno de mil & quinhentos & vinte
hum ãnos a senhora iffante com toda a frota de sua armada partio & sayo de
foz em fora& fez sua viagem. Que prazeraa a nosso senhor Deos ser tâto por
seu bem & descanso quanto elrey seu pay & a senhora raynha o principe &
hos iffantes seus irmãos & ela mesma desejã & todos desejamos. Amê.” [1]
E Gil Vicente (c.1465-c.1536), entre os diversos
festejos então organizados, escreve uma peça “Cortes de Jupiter” que o próprio autor refere ter sido “feyta ao muyto alto & poderoso Rey dom
Manoel o primeyro em Portugal deste nome, aa partida da illustríssima senhora infante dona Beatriz duquesa de
Saboya, da qual sua invenção he, que o senhor deos querendo fazer merce aa
dita senhora, mandou sua providencia por mensageira a Iupiter rey dos
elementos, que fizesse cortes em que se concertassem planetas sinos em favor de
sua viagem. Foy representada nos paços da ribeyra na cidade de Lixboa. Era de
M.D.XIX.” [2]
[1] Garcia de
Resende, (1470?-1536), Ida da iffante Dona Beatriz pera Saboya no Livro das
obras de Garcia de Resêde que tracta da vida & grandissimas virtudes:
bõdades: magnanimo esforço: excelêtes costumes & manhas & muy craros
feitos do christianissimo: muito alto & muyto poderoso.. el rey dom João o
segundo deste nome: & dos Reys de Portugal o trezeno de gloriosa memoria:
começado de seu nascimêto & toda sua vida ate ora de sua morte: cõ outras
obras que adiante se seguem. Manoel da Costa o fez em Evora a XXVI dias do mes
de Janeiro de mil quinhento & trinta & seys annos.
[2] Gil Vicente (c.1465-c.1536), Cortes de Júpiter, no Livro Terceyro da Copilaçam de toda las obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco livros. Foy impresso em a muy nobre, & sempre leal cidade de Lisboa, por Andres Lobato. Anno M.D. LXXXVI. BND. (pág. 193).
As embarcações na imagem de Lisboa do Civitates de 1572
fig. 24 – Navios no Tejo. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590) Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv 1572. Civitates Orbis Terrarum Vol. I 1572.
No centro da imagem destacam-se duas naus e, junto ao cais, uma galé.
A nau da
esquerda, de três cobertas, tem apenas arvorada a vela redonda do traquete (o
mastro pequeno), e a gávea do mastro de proa recolhida.
No mastro
grande estão recolhidas as redondas: a vela grande e a gávea.
Estão também
recolhidas a latina da mezena (o mastro de popa) e a cevadeira (no mastro
horizontal da proa.
Um escaler está junto da nau enquanto outros remam para terra, no que parece ser um desembarque.
fig. 25 – Uma nau de 3 mastros. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590) Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv 1572. Civitates Orbis Terrarum Vol. I 1572.
A outra nau com 3 cobertas, com dois mastros à popa (mezena e
contra-mezena), e por isso, por muitos chamada de galeão.
Apresenta uma espécie de esporão de ataque na proa, e está fundeado e ancorado, aparentemente sem ninguém a bordo.
fig. 26 - Uma outra nau com dois mastros de mezena. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590) Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv 1572. Civitates Orbis Terrarum Vol. I 1572.
Um escaler com quatro remadores transporta para terra três personalidades, com um desenho mais detalhado na versão da gravura de Sebastien Münster.
fig. 27 - Sebastien Münster, Pormenor de Lisbona. Xilogravura 26 x 33 cm. Cosmographey oder beschreibung aller Länder" 1598 Basel. BND.
Os navios no Tejo na Lissabon do Civitates de 1598.
fig. 28 – O Tejo e a zona ribeirinha de Lisboa. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), Lissabon in Civitates Orbis Terrarum 1598.
Dos vários navios escolhemos os dois do primeiro
plano.
Uma nau e um galeão fundeados com o velame recolhido.
fig. 29 – Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), Lissabon in Civitates Orbis Terrarum 1598.
E uma outra nau com quatro mastros (como se disse, que alguns chamam de galeão), também fundeada e toda embandeirada.
fig. 30
-
Que interessante ! E bem documentado também.
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