terça-feira, 26 de março de 2024

poemas recuperados 14

 


Paul Klee (1879-1940). New harmony 1936. Óleo s/tela 93,7 x 66,4 cm. Solomon R. Guggenheim Museum, New York.

só com sol e sombra

 Ao querer que o planeta azul fique mais verde

somar ao verde a luz do sol criando castanho

a cor da terra e dos esguios troncos da floresta

para se recriar os justos equilíbrios de antanho.

 

Ouvir a voz na água, nos bosques e nos prados

beber a névoa que se esparsa de tanta maneira

pisar arcanos e crespos caminhos empedrados

praias de água terra e espuma unidas pela areia.

 

Tudo o que nasce, cresce, morre e por fim acaba.

se move, flui, voa, corre, sopra, nunca mais torna

correm rios, voam nuvens, toda a floresta suspira.

 

Molhada é a terra ao caírem frias gotas de geada

se tudo se vai, nada se perde, tudo se transforma

só com o cantar do sol toda a terra por fim respira.

terça-feira, 19 de março de 2024

poemas recuperados 13

 



Imagem não identificada possivelmente de Abraham Bosse (1604-1676)?


De seguro apenas cada escolha que errei

 “Cubramos, ó silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto da nossa Imperfeição.” Fernando Pessoa*

 

Nesse estendido lençol de cheiro a terra

estremece como sonho aéreo inatingível

água madrinha em areais de cor dourada

nasce ardente ardor fogo febril inevitável

 

Os cantares crispados das ocultas feridas

de presentes ao sol e à murta indiferentes

como barco ébrio e aventuras não vividas

desgovernado pelos longes transparentes

 

As mãos afanosas com sensual brandura

nesse amor passageiro de encanto breve

sempre a escorrer as vindimas da ternura

 

Sinuosos quelhos por onde sempre andei

tornando tão esparso o que neles percorri

de seguro apenas cada escolha que errei.

 

*Fernando Pessoa, Floresta do Alheamento in Obra Poética, Companhia Aguilar Editora, Rio de Janeiro 1965. (pág.439).

 


sábado, 9 de março de 2024

poemas recuperados 12

 

René Magritte (1898-1967), Les merveilles de la Nature 1953. Óleo s/tela 77,5 x 98,1cm. Museum of Contemporary Art Chicago USA.

mar onde mergulhar é coisa incerta

Sobre uma pintura de Magritte

 

Na praia de airoso vento e suave mar

um rochedo sem retrato ou identidade

que pintou compondo como escultura

perfeita no gesto que o é de liberdade

 

Trabalhados nessa tão verdenta rocha

os amantes se dizem pedra enlaçados

como num desviado inverso de sereias

nessa paixão em peixes transformados

 

Ao fundo no tempo azul a nave avança

tétrico espectro qual navio de ninguém

sequer um vulto mareando na coberta

 

Nesse extenso areal que o azul amansa

não se sabe em que ondas se banharam

nesse mar onde mergulhar é coisa incerta.


terça-feira, 5 de março de 2024

poemas recuperados 11

 

Fernand Léger (1881-1955). Le réveille-matin 1914óleo s/tela 100 x 81 cm. Centre Pompidou. Musée national d'art moderne Paris,

Leve e suave sopra em mim

 

De forma leve suave sopra em mim

silenciosa melodia que nem escuto

são restos dos sons quase sem cor   

tiquetaques lambendo o tempo curto.

 

Imagino-me a despertar em flagelo,

névoa nascente de modo repentino,

difícil acordar de perplexo pesadelo

tropel de ideias em delírio peregrino.

 

Espio-me em vulto astuto na cidade,

fiapos de suaves árias em sol maior

crescendo na constante fútil vontade

 

de ir compondo pelo espaço aberto,

descartado o sonho quiçá reparador,

matinal melodia, quando eu desperto.