sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Aspectos do Porto na segunda década de oitocentos

 

Aspectos do Porto na segunda década de oitocentos

 

Episódio 1

 

Em 1817 Manoel Fernandes Thomaz (1771-1822) chega ao Porto vindo sul, para tomar posse do lugar de desembargador da Relação.

Ignoro se se deslocou por terra ou por mar, mas fosse qual fosse o modo de deslocação, a primeira imagem que teria da cidade, seria a que Henri L’Évêque retratou nesta conhecida gravura publicada precisamente, em 1817.

 

A gravura de H. L’ Evêque (1769-1832) [1]

 


fig. 1 - Henri L’Eveque (1769-1832), Vue de Ia Ville et du Port de Porto. H. L’Evêque. d. London P.ed 1817.

 

A gravura mostra uma cidade debruçada sobre o rio, com uma grande actividade portuária onde é salientado o comércio do vinho.

L’Évêque mostra ao fundo a cidade com a colina da Sé 1 com a Catedral 2 e o Paço Episcopal 3 e a colina da Vitória 3 com o Mosteiro de S. Bento.

Na encosta o convento de S. Domingos 4 e o convento de S. Francisco 5

 Destaca ao centro a Ponte de Barcas 10, entre o cais de Vila Nova de Gaia 9 e o cais da Ribeira 8 com as diversas portas e postigos da muralha medieval.

Junto à Porta da Ribeira, sensivelmente ao centro da imagem entre as duas embarcações a capela de Nossa Senhora do Ó 7 sobre a muralha.

Esta estende-se para montante com os antigos postigos do Pelourinho; da Forca; da Madeira e o postigo da Areia.

No primeiro plano, desenhado com rigor o Cais de Gaia. 

 


fig. 2 – A gravura de L’Évêque numerada. 

1 - A panorâmica da cidade 


fig. 3 - Pormenor da gravura com a panorâmica da cidade.

 

A cidade estende-se em anfiteatro desde o morro da Sé 1 com uma verdejante escarpa sobre o Douro, o vale do rio de Vila, o morro da Vitória 3 até à praia de Miragaia. 6

Após a curva do rio a Companhia das Vinhas do alto Douro constrói entre 1761 e 1767 o armazém de Monchique e a cidade estende para poente as actividades portuárias. E em 1788 é decidida a abertura da marginal para ligar Miragaia com a Foz. Já em 1789, com projecto de Champalimaud de Nussane [2], iniciam-se as obras do cais de Massarelos.

Na imagem ao fundo ainda se vê a margem sul com os seus armazéns.

Afirma o Padre Agostinho Rebello da Costa (?-1791), na “Descripção topographica e historica da Cidade do Porto” de 1789:

“(...) falarei somente dos dous cais que se dilatam pelas margens do Rio Douro, tanto da parte meridional, como setentrional.”

E prossegue “Os deliciosos passeios a que estes Cais daõ lugar, saõ o divertimento mais frequente dos Nobres, Povo e Senhores, tanto Portuguezes como Estrangeiros.

Espera-se, que o que está da parte setentrional chegue em breve tempo até São Joaõ da Foz.  Se isto assim acontecer, não haverá Cidade na Europa, que logre comodidade, ou ainda recreio similhante.” [3]

 



[1] Henri l'Éveque (1769-1832), viajante, pintor, aguarelista e gravador suíço, esteve várias vezes em Portugal, tendo registado graficamente, entre outros temas, numerosos episódios das Invasões Francesas no seu álbum Campaigns of the British Army in Portugal, under the command of general the Earl of Wellington de 1812 dedicado a este militar, com 19 gravuras. Foi ainda autor de outro álbum Costume of Portugal, um belo livro dos costumes portugueses publicado durante o século XIX dedicado ao conselheiro, ministro e secretário de Estado António de Araújo (António Araújo e Azevedo, 1º Conde da Barca 1754-1817).

[2] José Champalimaud de Nussane (Paul Joseph Champalimaud, Senhor de Nussane 1733-1799), engenheiro militar de origem francesa foi director da Junta de Obras Públicas entre 1787 e 1794.

[3] Agostinho Rebelo da Costa (?-1791), Descripção topographica e historica da Cidade do Porto. Na Officina de Antonio Alvarez Ribeiro, Porto 1789. (Cap.II pág. 29 e 30).


2 - O Porto como um anfiteatro

 E nasce ainda com Agostinho Rebello da Costa a descrição do Porto como uma urbe debruçada sobre o Douro em anfiteatro, já que para ele, o Porto “observado da parte meridional do Rio Douro, he bem similhante a hum grande Amphitheatro[1]

 Esta descrição irá persistir em Adrien (Adriano) Balbi (1782-1848) [2] um geógrafo de origem italiana que afrancesou o seu nome, e que esteve em Portugal por volta de 1820, e que assim descrevia a cidade:

“Porto. Cidade episcopal, construída em amfiteatro numa posição dominante ao longo da margem setentrional do Douro, sobre dois montes chamados da Sé e da Vitória.”

 [“Porto. cidade épiscopale, bâtie en amphithéâtre dans une dominante position le long du bord septentrional du Douro, sur deux monts nommés de la Sé et de la Victoria.”] [3]

 E, mais tarde, Alexandre Herculano (1810-1877) nas Lendas e Narrativas de 1851 também descreve o Porto como um amphitheatro sobre o esteiro do Douro, e reclina-se no seu leito de granito.[4]



[1] Agostinho Rebelo da Costa (?-1791), Descripção topographica e historica da Cidade do Porto. Na Officina de Antonio Alvarez Ribeiro, Porto1789. (Cap.II pág.21).

[2] Adrien Balbi (1782-1848), “Essai statistique sur le royaume de Portugal et d'Algarve comparé aux autres états de l’Europe,et suivi d’un coup d’oeil sur létat dês Sciences, dês Lettres et dês Beaux-Arts parmi les portugais dês deux hémisphères” Chez Rey et Gravier, Libraires, Paris 1822. (pág.213). Escrito no preciso momento da revolução liberal de 1820 e da Constituição de 1822, o Essai descreve um Portugal herdeiro do período iluminista e onde as novas ideias iniciam um novo ciclo. O livro é escrito ainda nas vésperas da independência do Brasil.

[3] Adrien Balbi (1782-1848), “Essai statistique sur le royaume de Portugal et d'Algarve comparé aux autres états de l’Europe,et suivi d’un coup d’oeil sur létat dês Sciences, dês Lettres et dês Beaux-Arts parmi les portugais dês deux hémisphères” Chez Rey et Gravier, Libraires, Paris 1822. (pág.213).

[4] Alexandre Herculano (1810-1877), Lendas e Narrativas. 2ª edição, Volume I. Arrhas por foro d’Hespanha, cap. IV Uma barregan rainha. Em Casa da Viuva Bertrand e Filhos, Lisboa MDCCCLVIII (pág. 154).


3 - A Ponte das Barcas 


fig. 4 - Pormenor da gravura com a Ponte das Barcas. 

No centro da gravura, a Ponte das Barcas 10 inaugurada em 1806, um projecto de Carlos Amarante [1], após ser rejeitado o projecto da ponte de pedra à cota alta de 1802.

Unindo uma pequena capela 9 na margem esquerda do Douro com o cais da Ribeira junto às portas da muralha no lado do Porto 8.

Junto à ponte do lado do Porto é visível a roda da grua de apoio à ponte e ao cais.


fig. 5 – Pormenor da gravura de L’Évêque com a roda da grua junto ao apoio norte da ponte.



[1] Carlos Luiz Ferreira da Cruz Amarante (1748-1815), engenheiro militar com projectos e intervenções em Braga (Santuário do Bom Jesus entre 1784 e 1811; fachada da igreja de N.ª Sr.ª do Pópulo e Hospital de S. Marcos) e na cidade do Porto com o projecto da Ponte das Barcas 1806; a Igreja de S. José das Taipas (1795-1878); a Igreja da O. T. da Trindade 1803 e a Academia Real da Marinha e Comércio em 1807 corrigindo um projecto de 1803 de José da Costa e Silva (1747-1819) entretanto embarcado com a Coroa para o Brasil.


4 - A grua do cais

Este tipo de grua que desde a antiguidade são utilizadas para içar grandes pesos, a partir do século XVI, torna-se frequente nos cais fluviais e marítimos, como se vê no porto de Brest numa pintura de 1774 de Louis Nicola van Blarenberghe.

 


fig. 6 - Louis Nicolas van Blarenberghe (1716-1794), Vue du port de Brest 1774.
Óleo s/ tela 125 X 194,5 cm. Musée des Beaux-Arts de Brest Métropole Océane.



fig. 7 – Pormenor da grande grua na figura anterior.

 

Sabemos o autor e a data desta grua.

fig. 8 - Louis-Jean Montier Deslongchamps (1721-1782), Grande grue portuaire de Brest XVIIIè siècle. In Recueil de toutes sortes de machines, d'outils, et d'ustensiles en usages pour la construction et carenne des vaisseaux, et de tout ce qui a raport à leurs armements dans un arsenal de marine. Pr[emie]re partie par Deslongchamps l'ainé, lieutenant des vaisseaux du Roy et du port de Brest en 1763. Plans des hunes, des barres d'hunes, chuquets, barres de peroquet et autres pièces concernant la construction de la mature des vaisseaux 1767. Bibliothèque Municipale de Brest, France.1763/67.

 

Uma gravura de Robert Batty (1789-1848) [1] publicada em 1829, também mostra uma vista do Cais da Ribeira com uma grua semelhante mas mais aperfeiçoada.


fig. 9 - Robert Batty (1789-1848), Oporto. The Custom-House Quay. Painted by Lieut. Col.e Batty. Engraved by R. Wallis. 1829.


fig. 10 – Pormenor da grua na gravura de Batty.

 



[1] O tenente-coronel Robert Batty (1789 - 1848) foi um ilustrador e topógrafo. Filho de um cirurgião e também pintor de paisagens. Em 1813, Batty pertenceu ao regimento Grenadier Guards que combateu na Guerra Peninsular. Publicou em 1829 um conjunto de gravuras do Porto. Ao longo da vida publicou diversos livros ilustrados das suas viagens na Holanda, 1815; no país de Gales 1823; na Alemanha 1826 e na Bélgica 1830. Ilustrou O motim e a Apreensão da H.M.S. Bounty, 1876.


5 – As figuras na Ponte de Barcas

Na gravura de L’Évêque circulam tranquilamente na Ponte de Barcas, um carregador com um fardo às costas 1, um soldado junto da prancha da embarcação 2, um cavaleiro na sua montada 3, um casal com uma sombrinha 4, uma mula com o respectivo cavaleiro e outra transportando carga 5, duas personagens que a meio da ponte trocam impressões observando as embarcações fundeadas 6, e junto ao cais da Ribeira um outro cavaleiro e mais algumas figuras 7.

 

 fig. 11 -  Pormenor da Ponte de Barcas com as personagens numeradas.

6 – O Desastre da Ponte de Barcas

Essa tranquilidade que a imagem da ponte procurava então exibir, não fazia, contudo, esquecer aos portuenses o terrível desastre que na ponte acontecera apenas oito anos antes.

Em 1809, as tropas francesas comandadas por Soult [1] entram por Chaves, e avançam para o Porto e em 29 de Março de 1809, entram no Porto, onde se instala um pânico generalizado.

Uma gravura de Théodore Jung mostra a ocupação da cidade do Porto pelas tropas de Soult em 29 de Março de 1809 e a retirada das tropas portuguesas e da população para Gaia.

A estampa é realizada em data posterior (provavelmente nos meados do século XIX) e mostra aspectos da cidade que em 1809 não estavam realizados ou construídos.

 


fig. 12 - Théodore Jung (1803-1865), Bataille d'Oporto remportée par le maréchal Soult sur l'armée portugaise retranchée en avant de la ville le 29 mars 1809. La fin de la bataille à 3 heures du soir. Le combat à l'entrée de la ville et fuite de la cavalerie portugaise traversant le pont sur le Douro. Aquarelle 1.160 x 2.100 m. Châteaux de Versailles et de Trianon. Versailles .

Na imagem vê-se a cidade do Porto estendendo-se do morro da Sé, com o Paço Episcopal inacabado, até ao Seminário.

 Na Ribeira com a muralha já transformada o que apenas sucedeu a partir dos anos 20 do século XIX.

[O projecto dos arcos no pano da muralha junto ao Douro é de Damião Pereira de Azevedo (17??-18??) de 1806 e 1810. Com os acontecimentos da Guerra Peninsular só em 19 de Julho de 1822, após a Revolução Liberal, é aprovada uma cópia desses desenhos realizada pelo Arquitecto da Cidade, Joaquim da Costa Lima Sampaio (17??-1837).]

 
fig. 13 – Damião Pereira de Azevedo e Joaquim da Costa Lima Sampaio, Planta Topographica do Muro da Cidade em frente à Ponte de Barcas, no Caes da Ribeira do Porto, em que o dt.º Muro he configurado exactam.te na sua forma, e extençaõ, e do mesmo modo marcadas as propriedades de particulares, que com elle confrontaõ, ou se unem pelo lado do Norte; e representado o Caes, e servidoens p.ª o Rio e Nova Ponte, como actoalm.te existe: donde se offerese a Distribuiçaõ dos arcos projectados no m.mo Muro,  q fazem o objecto des Planta feita p.lo Architecto da R.am da .ma Cid.e.

 A Praça da Ribeira abre já para o Douro, estão construídos os arcos da Ribeira, já está demolida a capela da S.ª do Ó e a Porta da Ribeira.

 


fig. 14 – Pormenor da estampa mostrando a cidade do Porto.

O pintor coloca as tropas portuguesas fugindo para Gaia pela Ponte de Barcas e alguma população atravessando o rio nas embarcações disponíveis entre as quais um rabelo.

 


fig. 15 – Pormenor da estampa mostrando o lado de Gaia.

 

No seguimento desta fuga para Gaia dá-se o desastre da ponte.

 No poema O Porto Invadido e Libertado escrito em 1815, António Joaquim de Mesquita e Mello descreve o desastre de 1809.

"Pela marcha do inimigo accelerada.

Não foi (como se quis) tirada a ponte;

Lá corre o povo aonde está guardada

Na céga fuga a barca de Charonte:

Junto ao caes essa ponte desastrada…

(Que horror!... Como haverá quem tanto afronte!)

Ella estala ao tomar gente infinita,

De golpe toda n’esse rio em grita (*)!"

(1)     (*) Na ponte das barcas colocada no fim da ladeira que vai para a pensil, havia um taboão a comunicar com o caes, e foi este o que sucumbiu ao pêso do povo. Diziam outros que estava levantado um alçapão que no meio da ponte havia, e que ahi se dera a catatstrophe; mas isto não podia ser, pois no mais forte da corrente não parariam os corpos. (Nota de Mesquita e Mello).

E na estrofe 55.ª

"Victimas sobre victimas cahindo,

O boqueirão encher tem feito;

Um vão clamor aterra, o Ceo ferindo,

Que extinguindo se vai de peito em peito;

Pia mão inda os últimos pedindo,

Que os levante d’aquelle horrível leito,

Lá ficam; e por cima da carnagem

Da vida o surdo instincto dá passagem!" [2]

 

Na Igreja de S. José das Taipas projectada em 1795 por Carlos Amarante existe uma pintura mostrando o desastre da Ponte de Barcas e a Ribeira como de facto existia em 1809.

 


fig. 16 - A população do Porto fugindo do exército de Soult em 1809, quadro na igreja de S. José das Taipas.

 


fig. 17 - Pormenor do quadro na igreja de S. José das Taipas.

 E o desastre é descrito, mais tarde, por Arnaldo Gama (1828-1869) em O Sargento-Mor de Villar.

“Os habitantes da cidade, dementados pelo pavor, correram á ponte, como estrada de salvação que a todos primeiro lembrava. Ao chegar junto d'ella, aquillo era uma massa compacta e apertadíssima, onde mal se podia res­pirar—e aquella massa compacta lançou-se por ella fora cada vez mais apertada, cada vez mais com­primida e cada vez mais allucinada, voando, não correndo, impellida pelo terror (…) N'aquella meia dúzia de palmos de ter­ra, n'aquella estreita fita de madeira que se esten­dia sobre o Douro, representou-se n'aquelle dia uma scena, que compendiou em breve resumo tudo quan­to a agonia e o pavor tem de mais perfeito, de mais horroroso (…)”  [3]

 

 



[1] Nicolas Jean-de-Dieu Soult (1769-1861), general francês que comandou as tropas napoleónicas na 2ª Invasão Francesa.

[2] António Joaquim de Mesquita e Mello (1792-1884), O Porto Invadido e Libertado. Poema em dous cantos 1815 (2ª edição totalmente reformada) Estrofes 52.ª. e 55.ª. In Collecção de Poesias reimpressas e inéditas de Antonio Joaquim de Mesquita e Mello. Tomo I adornado com o retrato do auctor Na Typographia de Sebastião José Pereira, Praça de santa Thereza, 28 a 30. Porto 1860. (pág. 26).

[3] Arnaldo Gama (1828-1869) em O Sargento-Mor de Villar, Episódios da Invasão dos Francezes. Porto 1863. (pág. 119 e 120).


7 - As embarcações no Douro na gravura de L’Évêque

 No rio estão ancoradas ou navegando diversas embarcações mostrando o Porto como cidade portuária, com múltiplas actividades ligadas à navegação e ao comércio, onde se destaca o armazenamento e a exportação do vinho do Porto.

E se a gravura mostra ao fundo diversas fragatas ancoradas, no centro da imagem, atracado a jusante da Ponte de Barcas, um Hiate, embarcando pipas de vinho. 11

 


fig. 18 – O Hiate ancorado junto à Ponte de Barcas.

 O Hiate era um Navio “com dois mastros de cuter não parallelos (o mais de prôa chama-se mastro de prôa - e a sua véla, traquete latino; o mastro de ré, chama-se mastro grande, - e a sua véla, a véla grande.

O hiate, quando tem os seus mastros parallelos, toma algumas vezes o nome de palhabote”. [1]

 Utilizado no transporte de mercadorias na navegação de cabotagem. Era uma embarcação que pelas suas dimensões e maneabilidade muito adaptada à navegação desde a barra até aos cais do e, por isso, aparece em muitas imagens do Porto ao longo do século XIX e inícios do século XX.

 


fig. 19Artur Guimarães (1905-?), Um Hiate in Agenda do Marinheiro Memento técnico de publicação periódica sobre assuntos profissionais de marinha e desportos náuticos, coordenado, por: Fernando Celestino Braga. Ilustrações de:Artur Guimarães. Edição do Autor. Porto 1947.

Estas embarcações ainda navegavam no Douro no início do século XX.

 


fig. 20 - Postal – Entrada na barra do Douro.


palhabote é uma pequena embarcação com dois mastros. Velas latinas. Pau de bujarrona.


fig. 21 - Artur Guimarães (1905-?), Um Palhabote in Agenda do Marinheiro Memento técnico de publicação periódica sobre assuntos profissionais de marinha e desportos náuticos, coordenado, por: Fernando Celestino Braga. Ilustrações de: Artur Guimarães. Edição do Autor. Porto 1947.

 


fig. 22 – Palhabote in O Navio, Obra Illustrada com 16 figuras, quinto anno – décima terceira série. Bibliotheca do Povo e das Escolas. David Corazzi, Editor. (Fig.40, pág.27)






Um pouco mais adiante está fundeado um navio idêntico.12


fig. 23 – O outro Hiate.

 

A montante da ponte dois marinheiros num bote atarefam-se junto de uma barcaça munida de uma grua. 13


fig. 24 – Pormenor com a embarcação munida de um cabrestante.

 

E na extremidade direita da gravura uma embarcação, de que apenas se vê a popa com um leme de xarolo (ou charolo) manobrado por uns cabos chamados gualdropes, junto da qual um pequeno bote parece carregar (ou descarregar) mais pipas de vinho. 14

 



[1] O Navio, Obra Illustrada com 16 figuras, quinto anno – décima terceira série. Bibliotheca do Povo e das Escolas. David Corazzi, Editor. Rua da Atalaya 40-52. Lisboa 1885 (pág. 26 ).



8 - O cais de Gaia

 O vinho é então um dos principais produtos do comércio e da economia da cidade.

Quando em 1756, o Marquês de Pombal criou, por Alvará Régio, a Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro, “...huma Companhia que, sustentando a cultura das vinhas, [que] conserve a produção dellas na sua pureza natural, em benefício da lavoura, do commercio, e da saúde pública...”, com a qual pretendia não só desenvolver a produção do Vinho do Porto, como defender a sua qualidade, e aumentar (aliás com sucesso) a sua exportação tornou o Vinho do Porto “… sem exageração, a baze do principal comércio desta Cidade; hum dos maiores, e mais fecundos ramos, que o promove; e a grande alma que o anima, assim como na indústria, como nos interesses geraes”, como aponta, no final do século, o Padre Agostinho Rebelo da Costa na sua Descrição Historica e Topographica da Cidade do Porto. [1]

São muitas as referências poéticas e em prosa ao Vinho do Porto na transição do século XVIII para o XIX. Do poeta arcádio Belmiro Transtagano (Belchior Manuel Curvo Semedo Torres de Sequeira 1766-1838) um elogio ao Vinho do Porto.

“Reverente

Encho, e bebo este vaso fulgente

Do liquor louro,

Que o pátrio Douro

Por entre frescas pampinosas vicies

Nos racemos crystallinos

para bródios perserva divinos”. [2]

 

 Assim, o primeiro plano da gravura mostra a margem sul onde um conjunto de personagens estão ocupadas em diversas actividades ligadas ao comércio do vinho.

 


fig. 25 – O cais de Gaia na gravura de L’Évêque.

 

Da esquerda para a direita: Junto à capela de madeira um carreiro conduz um carro de bois, com um jugo típico da região do Porto, e tanoeiros constroem e consertam pipas de vinho. Pelo chão uma aduela e instrumentos dos tanoeiros.

Duas peixeiras de cestos na cabeça dirigem-se na direção da capela seguidas por uma outra personagem também carregando um cesto envergando um longo manto.

Ao fundo navega um valboeiro de toldo. 15

 


fig. 26 – Pormenor do Cais de Gaia.

 



[1] Pe. Agostinho Rebelo da Costa (?-1791), Descripção Topografica, e Historica da Cidade do Porto (1788). Na Officina de Antonio Alvarez Ribeiro, Porto Anno de M DCC LXXXIX. (pág. 239).

[2] B.M.C.S. (Belchior Manuel Curvo Semedo 1766-1838) Dithyrambo. Ao lllustrissimo e Excellentissimo Senhor D. Joaô Carlos de Bargança Sousa e Line, Duque de Lafões. No fausto Nascimento da Sua Excellentissima Filha a Senhora D. Anna Maria José Domingas Francisca Júlia em 21 de Setembro de 1797.in Composições Poéticas, oferecidas ao Sereníssimo Regente de Portugal Senhor Dom João, Principe Regente de Portugal, por BMCS, sócio da Academia Tubuciana entre os Arcades Belmiro Transtagano. Na Regia Officina Typografica, Porto M DCCC III. (pág. 133 e 134).



9 - O carro de bois

Agostinho Rebello da Costa refere o carro de bois como o principal meio de transporte de mercadorias e salienta o característico chiar desta viatura.

“As fazendas, que se conduzem por terra, são transportadas para os diferentes Bairros da Cidade, em carros puxados por bois. Este género de transporte he taõ frequente, que em todos os dias livres, principalmente nas terças-feiras e sabbados, se admiraõ as ruas, ainda as mais largas, e principaes, atulhadas com tal excesso, que muitas vezes se fazem impra­ticáveis à passagem das seges, liteiras e cavalgaduras; retrocedendo humas, e parando outras, até acharem huma aberta, que as encaminhe aos seus destinos. O barulho desta condução naõ he taõ prejudicial ao Publico, como o que procede das impertinentes, e irritantes chiadeiras das rodas dos mesmos carros, que por serem muito apertadas nos eixos formaõ hum som taõ alto, e agudo, que fere os ouvidos com gravíssimo prejuízo dos enfermos, e pessoas aplicadas ao estudo.” [1]

E Henri L’Évêque desenhou carros de bois num álbum Costume of Portugal [2], publicado em Londres em 1814, onde surgem duas imagens com as respectivas legendas em francês e inglês.

 


fig. 27 - Henri L'Évêque, Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814.

 

L’Évêque sobre a primeira dessas estampas descreve o carreiro, com um traje idêntico à gravura de que nos ocupamos, e que conduz o carro de bois.

 “Ao lado caminha descontraído o condutor, as pernas à mostra, os pés calçando uma espécie de chinelo com sola de madeira, e trazendo ao ombro um longo bastão que termina em ferrão.”

[“A côté marche négligemment le conducteur, la jambé nue, les pieds renfermés dans une espèce de pantoufles, dont la semelle est de bois, et portant sur son épaule un long bâton terminé par un aiguillon.” ] 


fig. 28 - Henri L'Évêque, Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814.

 

 Na segunda gravura mostra um outro carro de bois, mais rústico (veja-se a configuração do rodado e da canga), L’Évêque descreve o carro de bois e assinala, como Agostinho Rebello da Costa, o seu característico chiar.

“…as viaturas que se utilizam, quer para trabalhos rústicos, quer para fins comerciais, assemelham-se perfeitamente à carroça representada nesta gravura. É muito pesada e de construção muito grosseira. As rodas são baixas, sólidas e presas ao eixo de madeira, que gira com elas. Tem atrelada uma junta de bois, cuja canga, presa aos chifres por uma correia, que conserva, contudo, a liberdade de se mover no pescoço do animal. As rodas sendo muito estreitas, destroem rapidamente os caminhos e as pedras do pavimento. O governo tentou mais de uma vez melhorar a forma destes carros de bois; mas deparou-se com intransponíveis obstáculos, tanto no apego dos camponeses a seus antigos hábitos, quanto na natureza das estradas rurais, que dificilmente permitiam o uso de outros carros. Esses carros de bois são muito antigos. Produzem na marcha um ruído estridente e desagradável, que lembra a Stridentia Plaustra de Virgílio, e que os portugueses expressam com uma palavra bastante imitativa, Chiar.”

 

[“…les voitures qu'on emploie, soit pour les travaux rustiques, soit pour les besoins du commerce, ressemblent parfaitement au charriot représenté dans cette gravure. Il est très-lourd, et d'une construction fort grossière. Les roues sont basses, pleines et fixées à l'essieu de bois, qui tourne avec elles. On y attelle deux boeufs, dont le joug, qui tient aux cornes par une courroye, conserve cependant la liberté de jouer sur le col de l'animal. Les bandes des roues étant três étroites, ruinent promptement et les chemins et les pavés. Le gouvernement a tenté plus d'une fois d'améliorer la forme de ces charriot ; mais il a trouvé des obstacles insurmontables, et dans l'attachement des paysans à leurs anciens usages, et dans la nature des chemins ruraux, qui ne permettent guères l'emploi d'autres voitures. Ces charriots sont de la plus haute antiquité. Ils produisent dans leur marche un bruit aigu et désagréable, qui rappelle les Stridentia Plaustra de Virgile *, et que les Portugais expriment par un mot assez imitatif, Chiar.”]

*Nota pessoal - A referência a stridentia plaustra, (carro com ruido estridente) é uma citação do poeta romano Virgílio (Virgílio Publius Vergilius Maro 70 a.C.-19 a.C.), nas Georgicas. III.536:

 

“Tempore non alio dicunt regionibus illis

Quaesitas ad sacra boves Junonis, et uris

Imparibus ductos alta ad donaria currus.

Ergo aegre rastris terram rimantur, et ipsis

Unguibus infodiunt fruges, montesque per altos

Contenta cervice trahunt stridentia plaustra.”

 

["A peine on put trouver deux buffles inégaux.

On vit des malheureux, pour enfouir les graines,

Sillonner de leurs mains et déchirer les plaines;

Et, raidissant leurs bras, humiliant leurs fronts,

Traîner un char pesant jusqu'au sommet des monts."] [3]

 

[Só por acaso encontramos dois bois desiguais.

Vivemos infelizes, para enterrar as sementes,

Arar com as mãos e rasgar as planícies;

E enrijecendo os braços, humilhando as cabeças,

Arrastar um carro rangente até o topo das montanhas.]

 

E ainda Henri L'Évêque numa gravura de 1812 do Mosteiro da Batalha mostra, no primeiro plano, um carro de bois idêntico.

 


fig. 29 - Henri L'Évêque (1769-1832), Mosteiro da Batalha 1812, água-forte p&b 43 x 53 cm. Colnaghi Biblioteca Nacional  Digital Lisboa.

 

Repare-se nas diferentes formas que assumem as Cangas e os rodados conforme as regiões e as épocas.

 


fig. 30 - Pormenor do carro de bois da gravura anterior.



[1] Padre Agostinho Rebello da Costa, Descripção Topografica e Histórica da Cidade do Porto que contém…Na Officina de Antonio Alvarez Ribeiro Porto Anno de MDCCLXXXIX (1789). (pág. 238 e 239).

[2] Henri L'Évêque, Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814. Com 50 gravuras e águas-tinta representando vários costumes portugueses e 53 páginas de texto em inglês e francês explicativos de cada uma dessas imagens.

[3] Oeuvres de Delille précédées d’une notice de sa vie et ses ouvrages par P.-F. Tissot, Professeur au College de France, et auteur des études sur Virgile. Tome I. Les Georgiques. Édition bilingue. Firne, Libraire éditeur, Qua ides Augustins n.º 3 Paris 1832. (pág.140).Notas - Jacques Delille (1738-1813), poeta traduziu as obras de Virgílio entre as quais as Geógicas em 1770. Publicou em 1783 o poema em 8 cantos Les Jardins ou l’art de embellir les paysages. Traduziu o The Lost Paradise de Milton. Pierre-François Tissot (1768-1854).

 

10 - O grupo central no cais de Gaia

 


fig. 31 – Pormenor do cais de Gaia.

 

No cais de Gaia, da esquerda para a direita:

Acostado ao cais, um rabão (não tem apegadas como o rabelo) * é descarregado de pipas de vinho perante o olhar fiscalizador de um capataz de chapéu e casaca. As pipas são conduzidas para os armazéns ou para embarque em navios de exportação.17

[*Nota - “O rabão é o rabelo, mas tem como nota característica principal a falta das apegadas. A espadela é mais curva, de molde a poder ser governada do ensaio.

Tem características secundárias, as quais, por sua vez, identificam quatro tipos de rabões, que se destinam a funções diversas.

Por vezes trocam a vela usada no rabelo, pela vela do saveiro, mas em duplicado. A estas chamam portas ou azas.

E, quando assim aparecem, têm o nome de barcos de rio abaixo.

No resto é igual ao rabelo.”

tipos de rabão:

I — Exactamente igual ao rabelo, mas sem apegadas, falta esta que é a sua característica principal. É usado para o transporte de carga diversa.

II — Tem a proa igual à do saveiro e não tem coqueiro; é empregado no transporte de estrumes.

III — Igual ao tipo N.° I, mas sem coqueiro. Utili­zado no transporte da carqueja.

IV — Igual ao tipo N.° I, mas com o coqueiro mais baixo.   Tem seu emprego no transporte do carvão.” [1] ]

 

Os homens que descarregam as pipas trajam como um Poveiro, ou seja um pescador, que João Baptista Ribeiro (1790-1868), representa num Livro de Estudos de Desenho [2] de 1809.

 


fig. 32 - João Baptista Ribeiro (1790-1868), Poveiro, desenho com o n.º 38 in Livro de estudos de desenho, 1809. FBAUP (desenho n.º 38 numerado à mão).

 


No primeiro plano um aguadeiro desloca-se com uma enorme bilha nos ombros, enquanto um cão persegue um outro, correndo no sentido contrário.

Duas mulheres juntam preparam a palha com que fabricam diversos produtos artesanais (cestos, vestuário, chapéus, embalagens, mobiliário, etc.). 16

 


fig. 33 – Pormenor da gravura de L'Évêque com o Cais de Gaia.

 

O rev. William Morgan Kinsey (1788-1851) [3], no seu Portugal Illustrated Letters, publicado em 1828 também apresenta um conjunto de desenhos dos costumes portugueses, entre os quais um portador de água, uma actividade frequente dos emigrados da Galiza.

 

 


fig. 34 - William Morgan Kinsey (1788-1851). Gallego or Wter carrier of Porto. in Portugal Illustrated Letters London, 1828.



[1] Armando Matos (1899-1953), o Barco rabelo, ed. da Junta Provincial do Douro Litoral, Porto 1940.

[2] João Baptista Ribeiro (1790-1868), Livro de Estudos de Desenho, 1809. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP).

[3] O reverendo William Morgan Kinsey (1788-1851), esteve em Portugal em 1827. A partir do seu Diário, das cartas que escreveu ao poeta e dramaturgo Thomas Haynes Bayly (1797-1839) e ainda de outras fontes, escreveu um livro que publicou em 1828 com o título Portugal Illustrated, com gravuras de G. Cooke e J. Skelton. A segunda edição que utilizamos é de 1829. 


11 – O fidalgo e as mulheres de mantilha

Um fidalgo e as duas mulheres “saia preta e mantilha da mesma cor” [1] que o acompanham, observam um grupo de vendedeiras. 18

 

 


fig. 35 - Pormenor da gravura com o Cais de Gaia.





fig.
36 - Henri L'Évêque, Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814. (pág. 53).
 

No referido álbum, L’Évêque insere uma gravura de uma figura feminina, com o seguinte comentário sobre a mantilha: “É um enfeite de seda, ou de outro tecido leve, que as mulheres levam para o passeio, para alguma visita, e principalmente para ir à Igreja. É um grande véu negro, cuja forma, com algumas pequenas diferenças, é semelhante em todas as províncias. A parte deste véu que cobre a cabeça termina em uma ponta muito alongada, que as senhoras usam com grande arte, para esconder, ou para descobrir o rosto, conforme são atraentes, ou para encobrir a sua modéstia.”

[“C'est un ajustement de soie, ou d'une autre étoffe légère, que prennent les femmes pour aller soit à la promenade, soit en visites, et surtout à l'Eglise. C'est un très-grand voile noir dont la forme est la même dans toutes les provinces à quelques légères différences près. La partie de ce voile qui couvre la tête se termine par une pointe très-allongée dont les dames se servent avec beaucoup d'art, pour cacher, ou pour découvrir leur figure, en proportion de leurs attraits, ou de leur modestie.”]

 


fig. 37 - William Morgan Kinsey (1788-1851). Females as attired in portuguese towns. in Portugal Illustrated Letters London, 1828.

 

Segundo Almeida Garrett as damas portuenses em 1817 escondiam-se por detrás dessas mantilhas.

“Enfronhadas á força, á força gebas

Desairosas bonecas!

Arrojae-me no Doiro co'esses trajos,

Portuenses donzellas! — Quem podéra

Pleitear comvosco em formosura e graças

Se quaes sois vos mostrásseis?

 

Formas que Vénus para si tomara

D'essa mortalha de invenção fradesca

Quem as libertará? Bioco negro

De donde mal vislumbra

Raro lampejo de celeste face

Oh! quem o rasgará?...” [2]

 

A mantilha torna-se assunto de polémica literária.

 

No Correio do Porto n.º 79 de Quinta feira 28 de Dezembro de 1820 é publicado um anúncio que informa que se vende por 60 reis o Desterro das Mantilhas em que o Poeta Gallego com razões bem arrazoadas mostra a necessidade de desterrar um traje, que esconde a formosura, e gentileza das mulheres bonitas.

 

A este opúsculo responde António Joaquim de Mesquita e Mello (1792-1884), já aqui referido, com a publicação em 1821 de A Defeza das mantilhas.  

Em 1866 Camillo Castello Branco ainda lembra as mantilhas.

 “Lá se foram, senão todas, decerto as que embiocavam celestes faces.

Alguma reformada mestra de meninas, ou tia de janota da rua dos Mercadores, ainda vae á missa d'alva ou Lausperenne com sua mantilha de sarja.

Ai! eu ainda conheci mulheres formosas de mantilha.

A graça com que ellas as apanhavam e refegavam na cintura! Como as nalgas se relevavam redondas debaixo do lapim! E o bamboar dos cabellos anelados sob o docel negro e arqueado da coca!

E não vae longe isto. Ainda são bellas muitas das mulheres que eu via mostrarem o pé encruzado de fitas por debaixo da orla da lustrosa mantilha. Quando ellas tornarem, saiba o século XXI que fui eu quem, n'esta anarchia de modas francezas, commemorou com saudade a magestosa veste com que nossas avós se fizeram queridas de seus maridos e d'outros.” [3]



[1] Pe. Agostinho Rebelo da Costa, Descripção Topografica, e Historica da Cidade do Porto, Na Officina de Antonio Alvarez Ribeiro, Porto Anno de M DCC LXXXIX. (Cap. III pág.53).

[2] Joaõ Mínimo (Almeida Garrett), Lyrica, VII. As Férias a um Amigo. Publicada pelo auctor do resumo da História da Língua Portugueza do poema Camões, D. Branca, Adozinda, & C. SUSTENANCE E STRETCH, 14 , PERCY -STREET, RATHBONE-PLACE .Londres MDCCCXXIX. (pág.41)

[3] Camillo Castello Branco, Cavar em Ruínas. 2.ªEdição. Livrarias de Campos Junior – Editor, Rua Augusta 78 a 80. Lisboa 1866. (pág.51 e 52).


12 – O grupo das vendedeiras

Junto às mulheres de mantilha e ao fidalgo com bengala e chapéu tricórnio, um grupo de vendedeiras, quase todas sentadas, vão-se atarefando nas suas actividades.

 


fig. 38Pormenor da gravura com o Cais de Gaia.

 

No centro da imagem o grupo de vendedeiras é observado por um “elegante do povo” como o designa L’Èvêque. 19

 


fig. 39Pormenor da gravura com o Cais de Gaia.



fig. 40 - Henri L'Évêque, Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814.

 

“Esta imagem representa um elegante do povo. Usa um chapéu de três pontas, para se dar um ar de militar, tem na boca um cigarro e envolve-se num grande casaco de mangas compridas, que usa em todas as estações.

Já há alguns anos que este casaco deixou de ter um uso generalizado em Lisboa. As pessoas de bom gosto acabaram por o abandonar, para seguir a moda vinda do estrangeiro; mas o povo conserva-o com um apego, que o clima e os preconceitos ajudam a fortalecer. O homem do povo encontra neste casaco um agasalho para a saúde que lhe garante contra os perigos das mudanças bruscas do calor ao frio, frequentes em Lisboa, em todas as estações. Serve, além disso, para sua auto-estima; já que sob este manto ele pode carregar escondidos quer os instrumentos de seu ofício quer as provisões para sua família, que um ridículo preconceito não lhe permite revelar sem se expor e corar perante os seus iguais.”

[“Ce tableau représente un élégant de la classe du peuple. Il porte un chapeau a trois pointes, pour se donner un air militaire, tient à la bouche un cigare, et s'enveloppe dans un large manteau à manches, qu'il porte dans toutes les saisons.

Il y a bien peu d'années que ce manteau a cessé d'être d'un usage général à Lisbonne. Les gens du bon ton l'ont abandonné, pour suivre les modes étrangères; mais le peuple le conserve avec un attachement, que la nature du climat et les préjugés du pays se réunissent pour fortifier. L'homme du peuple trouve un préservatif pour sa santé dans ce manteau qui le garantit des passages subits du chaud au froid, aussi communs à Lisbonne, dans toutes les saisons, qu'ils y sont dangereux. Il y trouve aussi un menagement pour son amour-propre; puisque sous ce manteau il peut emporter en cachette et les instrumens de son métier, et des provisions pour sa famille, qu'un préjugé bien ridicule ne lui permettroit pas de porter à découvert sans l'exposer à rougir aux yeux de ses égaux.”]


No álbum de desenhos de 1809 da autoria de João Baptista Ribeiro (1790-1868), já aqui referido, surge com o n.º 39 uma figura de “padeira de Ovar” com muitas semelhanças com a figura central do grupo das vendedeiras da gravura de L’Évêque.

 

 


fig. 41 Pormenor da gravura com o Cais de Gaia.

 

 


fig. 42 - João Baptista Ribeiro (1790-1868), Padeira de Ovar, in Livro de estudos de desenho, 1809. FBAUP. (desenho n.º 39).


13 – O barqueiro

Debruçado sobre o rio um barqueiro vai dando instruções aos marinheiros de um escaler. 20

 


fig. 43 - –  Pormenor da gravura com o Cais de Gaia.

 


fig. 44 - Henri L'Évêque, Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814. (grav. N.º 40)

 

Em Costume of Portugal comenta esta gravura de um barqueiro do seguinte modo:

“A gravura, nº 40, mostra um desses barqueiros em seu traje habitual; isto é, pés e pernas nus, a jaqueta negligentemente sobre um dos ombros e a cabeça coberta por um chapéu barato. Vemos, ao fundo, um barco que quer atracar; mas a maré baixa não lhe permite chegar próximo do cais, e o barqueiro salta para a água, transportando ao colo, sucessivamente, os passageiros, sejam eles quem forem, que se encontrem no seu barco, e leva-os com segurança para a margem.” 

[“L'estampe, No. 40, représente un de ces bateliers dans son costume habituel; c'est-à-dire, les pieds et les jambes nus, la veste négligemment jetée sur une des épaules, et la tête couverte d'un méchant chapeau. On aperçoit, dans le fond, un bateau qui veut aborder; mais la basse-marée ne lui permet tant pas d'arriver bord à quai, le batelier se jette à l'eau, prend successivement, entre ses bras, les passagers, quelsqu'ils soient, qui se trouvent dans son bateau, et les porte en sûreté jusqu'au rivage”.]



Outras imagens do Porto semelhantes e da mesma época

 

Da mesma época existem outras imagens, algo semelhantes, que mostram o Porto, visto ao nível do rio, com o atravessamento do Douro pela Ponte das Barcas.

Apresentamos uma água-tinta de Henry Smith datada de 1813 e uma gravura de Robert Batty executada por estes anos, mas publicada em 1829.

1 - A gravura de Henry Smith 1813

Henry Smith (1774-1840) desenha uma água-tinta em 1813, referindo a 2ª Invasão Francesa e os seus protagonistas.

  


 fig. 45 - Henry Smith, Paisagem do Porto, c.1813, água tinta s/ papel. Museu Nacional Soares dos Reis.

 

Esta água-tinta foi depois reproduzida numa gravura de Edward Orme (1775-1848), dedicada ao Marquês de Wellesley por Robert Daubeny King (?-?), representando a entrada no Porto das tropas anglo-portuguesas comandas por Wellington, atravessando o Rio Douro pela ponte das barcas, em 12 de Maio de 1809. 


fig. 46 - Henry Smith, Oporto, with the Bridge of Boats 1813. To the Most Noble the Marquis Wellesley K.G., &c. &c. &c. This View of Oporto, upon its evacuation by MARSHAL SOULT, before MARQUIS WELLINGTON, in the Campaign of 1809, Is, with permission, respectfully dedicated by his LORDSHIP'S most obedient humble Servant ROBERT DAUBENY KING, Late Lieutenant, Royal Fusileers. / Henry Smith Esq.r del.t; M. Dubourg sculp.t.  London: Sold July 1 1813, by Edw.d Orme, Bond St. corner of Brook Str.t., [July 1 1813] Agua-tinta 50,3 x 67,7 cm. British Museum.

 

A água-tinta de Smith datada do mesmo ano da conhecida Planta Redonda - a primeira carta da cidade - de Georges Balck e significativamente dedicada ao Brigadeiro Nicolau Trant [1] e assinala, na sua dedicatória ao futuro Duque de Wellington, a vitória das tropas anglo portuguesas sobre as tropas napoleónicas.

Mostra as duas colinas nas margens do Douro, encimada a do lado de Gaia pelo convento da Serra do Pilar, e a do lado do Porto com o pano oriental da Muralha.

Ao fundo e ao centro por cima da ponte das barcas o Seminário.

 Na pintura e na gravura sobre o muro da Ribeira distingue-se a Capela de Nossa Senhora da Piedade, capela da Piedade do Terreiro, da Piedade do Cais ou simplesmente, da Senhora do Cais e cujo culto sempre atraiu as gentes ribeirinhas, em particular os mareantes e aqueles que demandavam a Alfândega. (Com a demolição da muralha e da porta da Ribeira a imagem da Senhora do Ó, foi transferida para o largo do Terreiro onde se encontra o actual edifício construído no Séc. XVII). 

 Um valboeiro de toldo está atracado junto à Porta da Ribeira.

 

fig. 47 – Pormenor da gravura com o valboeiro e a capela de N.ª Sr.ª do Ó.

 

Atracados ao cais da Ribeira um conjunto de sete valboeiros. No Douro navega uma embarcação, com uma cabine e dois tripulantes, transportando passageiros de uma para a outra margem.

 


fig. 48 – Pormenor da gravura com os valboeiros e a embarcação com cabine.

 

No Douro, junto ao cais um valboeiro com toldo, com a grande vela latina recolhida numa comprida verga e articulada com o mastro inclinado para a ré. Ao fundo duas fragatas fundeadas no rio. 


fig. 49 – Pormenor da gravura com o valboeiro visto pela proa.

 

No Douro entre barcos a remos uma lancha poveira com a vela enfunada e um hiate fundeado junto à margem de Gaia sensivelmente no mesmo sítio da gravura de L’Évêque.

 


fig. 50 . Pormenor da gravura com o Mosteiro da Serra do Pilar, as construções na margem de Gaia, a ponte e as embarcações no rio.

 

 


fig. 51 – Pormenor da gravura com o hiate ancorado junto à margem sul.

 

 



[1] Sir Nicolau Trant (1769 - 1839), General inglês em Portugal durante a Guerra Peninsular. Em 1808, comandou as forças portuguesas que acompanharam Wellesley na sua marcha para o Sul do reino. Tomou parte na batalha do Vimeiro contra as tropas de Junot. Em 1809 é Governador da cidade de Coimbra sendo ele que avançou ao encontro das tropas então comandadas por Soult (Nicolas Jean-de-Dieu Soult 1769-1851) impedindo a passagem do Vouga. Acompanhou Wellesley (Arthur Colley Wellesley 1769-1852 1º Duque de Wellington) e Beresford (William Carr Beresford 1768-1854) na entrada das tropas inglesas no Porto, sendo depois até 1814 encarregado do Governo da cidade, instalado na Quinta das Águas-Férreas, tendo morrido por volta de 1825 no Brasil.



2 - A gravura de Robert Batty 1829

 

A gravura de Robert Batty (1789-1848) [1] publicada em 1829, mostra uma vista do Porto do lado de Gaia, a jusante da Ponte das barcas.

À esquerda a Praça da Ribeira abrindo já para o Douro. Por trás a Torre dos Clérigos.

Entre o morro da Sé com a Igreja e o Convento de S. Lourença (dos Grilos), a Catedral, e o Paço Episcopal e o pano oriental da muralha, vê-se ao fundo o Teatro do Príncipe Real (S. João), inaugurado em 13 de Maio de 1789, projectado por Vicenzo Mazzoneschi (1747-1806).

 

No rio diversas embarcações: hiates, um rabelo, valboeiros com toldo, uma lancha poveira ao centro, um caíque, e um barquinho do rio Minho.

 

No primeiro plano no cais de Gaia um pequeno pontão de pedra onde um casal com uma criança se dirigem para um valboeiro atracado. Uma mulher de bilha na cabeça. Duas personagens conversam no centro junto a aduelas das pipas de vinho. Outras duas figuras à direita.

 


fig. 52 - Robert Batty (1789-1848), Oporto. From Vila Nova. 1829. Painted by Lieut. Col.e Robert Batty. Engraved by William Miller (1796-1882).

 

O próprio Robert Batty anota:

“A vista aqui anexa, obtida da base da Serra, perto da Ponte das Barcas, apresenta-nos a parte mais antiga da cidade do Porto. O espectador fica assim localizado em frente do Palácio do Bispo, que juntamente com a Catedral e os edifícios próximas, ocupam o alto da Colina Central da figura. (...)

 

fig. 53 – Pormenor da gravura com a imagem da cidade.

Nesta gravura Robert Batty preocupa-se em assinalar a Torre dos Clérigos elemento fundamental da imagem da cidade e da navegação no Douro.

(...)Olhando para a esquerda, o motivo que mais atrai é a Igreja dos Clérigos; a sua alta Torre permite ser vista por qualquer embarcação, que se dirija ao Porto, à distância de 10 léguas e serve de ponto de referência aos barcos que demandam a barra.

Foi construída em 1748 [de facto entre 1753 e 1763] e é inteiramente de pedra, da mais bela fábrica, e com um carácter artístico de que os portugueses não contam muitos rivais. As antigas Muralhas da cidade marginam o rio, e a bela rua que se vê à esquerda, e que vem dar ao cais, é a rua de São João.

À direita observa-se uma parte da Ponte das Barcas, por entre uma grande quantidade de navios e barcos particulares do país, a qual estabelece uma comunicação muito útil e agradável entre a cidade e Vila Nova. A população do Porto e de Vila Nova eleva-se a 80 000 almas.” [1]

 

 

fig. 54 – Pormenor da gravura com as embarcações no Douro.

 

Nesta vista, Batty preferiu no rio mostrar as embarcações sem as velas desfraldadas, mostrando melhor a arquitectura da Ribeira-

 

 


fig. 55 -  Pormenor da gravura com o hiate em 1º plano.

A gravura merece de Octávio L. Filgueiras o seguinte comentário:

 

“…apesar da sensível melhoria registada na representação do rabelo, amarrado à praia, cerca dos molhos de arcos de pipas. Quanto aos outros, os navios de comércio e embarcações de cabotagem (bergantins, brigues, iates), encontram-se documentados sem rasgos a realçar, não se perce­bendo até por quê o iate fixado no extremo limite da gravura, à direita, apresenta uma armação de panos latinos, ao contrário dos restantes, correctamente aparelhados com velas de carangueja.

Enfim, e no que tange à praia de Vila Nova, a animação das cenas figuradas — valboeiros transportando pessoas e géneros de consumo, por­menores de embarques e descargas, gente em descanso e à conversa”. [2]

 


fig. 56 -  Pormenor da gravura mostrando o barco rabelo acostado à margem de Gaia.

 



[1] C.M.P., Álbum de Estampas do rio Douro, na inauguração da Ponte da Arrábida com prólogo do Professor Doutor Damião Peres, selecção e comentários de Monteiro de Andrade e António Cruz, ordenação gráfica da capa e do texto de Carlos Carneiro. Litografia Nacional do Porto 1963. Reedição 1983.

[2] Octávio Lixa Felgueiras (1922-1996), Algumas Cenas e Cenários Ribeirinhos de Vila Nova de Gaia em Gravuras dos Séculos XVII a XIX. Gabinete de História e Arqueologia de Vila Nova de Gaia 1984.