segunda-feira, 9 de maio de 2022

Apontamentos sobre a Lisboa e Sevilha nos séculos XVI e XVII (11) 2

 

 Os navios no Tejo

Breve referência aos navios nas imagens de Lisboa no século XVI

Lá onde o Tejo lava a grã cidade,

Qu’em toda a Christandade espanta, & soa,

Eu digo a alta Lisboa do Occidente

Raynha, & do oriente:” [1]  

Na análise destas vistas, comecemos pelo Tejo e palas embarcações que nele estão representadas.

De facto, em todas estas vistas de Lisboa é destacado o rio Tejo onde numerosas e diversas embarcações, procuram afirmar a cidade como o grande (o maior?) porto peninsular e a sua importância para a navegação atlântica.

Camões descreve os barcos que no Tejo navegam.

“Vejo o puro, suave e brando Tejo,

com as côncovas barcas, que, nadando,

vão pondo em doce efeito seu desejo.

Uas co’ brando vento navegando,

outras cos leves remos, brandamente

as cristalinas águas apartando.  [2]   

E Sá de Miranda sublinha que:

“Vereis barcos ir à vella,

Huns que vão outros que vem,

Como que se desavem,

Com hua viração singela

Tanta força, & arte tem.” [3]

Do lado de Espanha é assinalada a importância de Lisboa como cidade portuária e a diversidade das embarcações que no Tejo navegam.

Pedro de Medina (c.1493-c.1567) no seu livro Grandezas y cosas memorables de España de 1548, refere: “En el puerto desta ciudad ay sempre grãde numero de naos, y otros muchos navios, vasos de todas suertes, y gête de todas naciones, por ser el mas principal puerto de España, y aun uno de los principales del mundo, al qual concurre gran multitude de navios. Es puerto muy seguro hecho de la misma boca del rio Tajo, que tiene três léguas de ancho.” [4]

 

E Bartholomé de Villalba y Estaña (1548-1605?), em El Pelegrino curioso y Grandezas de España descreve a diversidade de embarcações, entre as quais destaca as grandes naus que vêm da Índia e as actividades ligadas à navegação e ao comércio dos produtos (e escravos) da Ilha da Madeira e da Índia, na Ribeira de Lisboa.

“(…) ansi la falda del rio adelante fué viendo las naves tan ordinarias en aquel puerto, galeras, bateles, caravelas, bergantines, barcas, fustas, esquifes, que os da gusto ver tanto genero de navíos. Vió en su presencia llegar cinco naves de las Indias Ocidentales con gran cantidad de especias, de clavos, canela, pimienta, que esto es la mayor grandeza de su rey. Verdad es que de la Isla de la Madera le traen gran suma de pipotes, de todas conservas y otras cosas muy delicadas, de más de los negros que allí aportan de Marigongo y otras provincias. Hay, pues, en este espacio gran numero de maestros, unos haziendo vageles, otros calafateando; unos despalman, otros ensevan; más adelante hazen pipas, botas, toneles.” [5]



[1] António Ferreira (1528-1569), Archigamia Egloga I, Poemas Luzitanos do Doutor Antonio Ferreira. Dedicados por seu filho Miguel Leite Ferreira, ao Principe D. Philippe nosso senhor. Impresso com licença, Por Pedro Crasbeeck. Em Lisboa M. D. XCVIII. (pág. 71 v.).

[2] Luís de Camões, Elegia III. Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão, Editores. Porto 1970. (pág.406).

[3] Francisco de Sá de Miranda (1481-1558), Carta II a António Pereira senhor de Basto in As Obras do Doutor Francisco de Saa de Miranda, a custa de Antonio leite, Mercador de livros, na rua nova. Lisboa M DC LXXXVII. (pág. 215).

[4] Pedro de Medina (c.1493-c.1567), Libro d[e] grandezas y cosas memorables de España. Agora de nuevo hecho y copilado por el Maestro Pedro de Medina vezino de Sevilla. Dirigido al Serenissimo y muy esclarecido Señor D. Filipe Principe de España.e Nuestro Señor. En casa de Dominico d[e] Robertis. Sevilla. M D XL VIII. (pág. 24).

[5] Bartholome de Villalba y Estaña (1548-1605?), El pelegrino curioso y grandezas de España 1577, por Bartholomé Villalba y Estañá. publícalo la Sociedad de Bibliófilos Españoles; Imprenta de Miguel Ginesta Madrid 1886-1889. Biblioteca Digital Hispánica (Tomo II, pág.90).


A nau d’amores. O valor simbólico da nau.

Em Janeiro de 1527, Gil Vicente, com o intuito de celebrar regresso que D. João III e Dona Catarina, na sua chegada solene à cidade de Lisboa, produziu “A tragicomedia seguinte he chamada Nao damores. Representouse ao muyto poderoso Rey dom Ioam o terceyro aa entrada da esclarecida & muy catholica Raynha Dona Caterina nossa Senhora, em a cidade de Lixboa. Era de M. D. XXVII.” [1]

Na peça, a personagem Príncipe da Normandia pede uma embarcação a “uma princesa em figura da Cidade de Lixboa”.

Esta responde que a embarcação disponível, é a nau de São Vicente, que pertence à Coroa:

“Pera o que mereceis

senhor pouco me pedis,

inda que a Nao que quereis

val mais que todo Paris

como vós sey que sabeis.

Porem eu fora contente

mas essa Nao nam he minha

porque foy de sam Vicente

& he del Rey & da Raynha…” [2]

O Príncipe da Normandia pede então para construir uma nau, que se chamará nau d’amores, nos estaleiros de Lisboa que então são conhecidos por fabricar os melhores navios.

“Por remedio de mis Dolores

dadme licencia entera

que se haga uma Nao damores

aqui en vuestra Ribera

Dose hazen las mejores.” [3]

A nau que se chamará Nau d’amores, é então descrita pelo Príncipe numa longa fala, em que se enumeram os materiais e as componentes da nau identificadas com os encantos e desencantos do amor.

“Ha de ser desta manera

Para navegar segura,

La voluntad la madera

Y la razon plegadura

Dorada toda de fuera.

Las estopas de recelos

Bincados de diez en diez

Y los castillos de celos

Y la tristeza la pez

Tanta que cubran los cielos.

El mastel de fee segura

Y la vela desperança,

La gavea de hermosura

El traquete de lembrança,

La mezena de dulçura.”  [4]



[1] Gil Vicente(c.1465-c.1536), Naodamores,in Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco Livros. Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro terceiro, pág. CLXV).

[2] Gil Vicente(c.1465-c.1536), Naodamores,in Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco Livros. Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro terceiro, pág. CLXVII).

[3] Gil Vicente (c.1465-c.1536), Não damores, in Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco Livros. Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro terceiro, pág. CLXVII).

[4] Gil Vicente (c.1465-c.1536), Não damores, in Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco Livros. Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Livro terceiro, pág. CLXVII).


As embarcações na Crónica de D. Afonso Henriques

 Nas imagens de Lisboa, por entre diversos tipos de embarcações, são salientadas as naus e galeões de longo curso.

As naus dos finais do século XVI eram navios de grande calado, de três e quatro mastros, com aparelhos redondos e velas latinas, altos castelos de popa, aptos para transporte de grandes cargas, mas, simultaneamente, prontos para combates navais.

Na imagem do início de Quinhentos, da Crónica de D. Afonso Henriques, entre duas naus navegam 3 caravelas latinas de dois mastros, utilizadas em viagens de médio curso ou como apoio a armadas de naus ou galeões. Estão representadas duas sétias (galés) e diversos bergantins. 

fig. 11 – Pormenor do frontispício da Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe D. Afonso Henriques, Primeiro Rey de Portugal. 1508.

Na Genealogia dos Reis de Portugal 

fig. 12 - Simon Bening (1483 – 1561) e António d’Olanda (1480-c.1558?), Pormenor de Tavoa Primeira dos Reys, Tronco do conde D. Anrique, 1530/34, Fólio 7r da "Genealogia dos Reis de Portugal", MS. 12531, British Library.

À esquerda, duas naus vistas de proa e de popa, as velas enfunadas.

Duas galés.

Três naus com o velame recolhido.

Uma embarcação com um só mastro.

Duas caravelas com duas latinas e uma com apenas uma latina.

 

As embarcações no Prospecto de Lisboa da Biblioteca de Leiden

No Prospecto de Lisboa o anónimo autor desenha, com minuciosos detalhes, as naus que navegam ou estão ancoradas no Tejo, por entre outras embarcações menores. 

fig. 13 – Anónimo. Prospecto de Lisboa c.1530, com as embarcações numeradas de 1 a 9, sobre o desenho em 17 folhas, pena e aguada, cor, 75 x 245 cm. Leiden University Libraries. 

As embarcações da esquerda para a direita:

1 -  Uma nau, vista de bombordo, ancorada e com o velame recolhido.

fig. 14 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

2 – Uma nau ancorada vista pela proa. 

fig. 15 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

3 – Outra nau, vista de bombordo, com o velame recolhido.

fig. 16 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

4 – Uma nau navegando a todo o pano, na direcção do espectador.

fig. 17 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

5 – Uma nau ancorada vista de perfil e onde marinheiros se ocupam da sua manutenção.

fig. 18 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.


6 – Uma nau navegando, a todo o pano, rumo ao sul.

fig. 19 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

7 – Uma nau, fortemente armada, vista de bombordo e navegando, a todo o pano, para poente.

fig. 20 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

8 – Outra nau, onde também se notam os canhões, navegando a todo o pano, hasteando a bandeira portuguesa.

fig. 21 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

9 – A Vista de lisboa da Biblioteca de Leiden mostra ainda uma caravela latina de três mastros, armada com peças de fogo.

fig. 22 - Pormenor do desenho da Biblioteca da Universidade de Leiden.

A nau Santa Catarina de Monte Sinai

Para melhor se compreender os navios desta época, uma conhecida pintura de Joachim Patinir (c.1480-1524), em que se vê, em primeiro plano, à popa e em pormenor, uma nau dos finais do século XV e início do século XVI, com todo seu velame. 

fig. 23 - Joachim Patinir (c.1480-1524), Portuguese carracks off a rocky coast c. 1540 National Maritime Museum Greenwich London.

Esta nau das Índias seria a Santa Catarina de Monte Sinai, rodeada por três outras naus e uma galé, no que se julga ser o desembarque em Nizza (Nice), em 1521, da princesa Beatriz de Portugal (1504-1538) filha de D. Manuel I, que embarcou no Santa Catarina do Monte Sinai para o seu casamento com Carlos III o Bom, (1486-1553), Duque de Sabóia de 1504 a 1553.

Garcia de Resende refere e situa no tempo a partida de D. Beatriz, em 1521.

“E ao sabado polla manhã dia de sam Lourenço dez dias do dito mes dagosto do dito anno de mil & quinhentos & vinte hum ãnos a senhora iffante com toda a frota de sua armada partio & sayo de foz em fora& fez sua viagem. Que prazeraa a nosso senhor Deos ser tâto por seu bem & descanso quanto elrey seu pay & a senhora raynha o principe & hos iffantes seus irmãos & ela mesma desejã & todos desejamos. Amê.” [1]

 

E Gil Vicente (c.1465-c.1536), entre os diversos festejos então organizados, escreve uma peça “Cortes de Jupiter” que o próprio autor refere ter sido “feyta ao muyto alto & poderoso Rey dom Manoel o primeyro em Portugal deste nome, aa partida da illustríssima senhora infante dona Beatriz duquesa de Saboya, da qual sua invenção he, que o senhor deos querendo fazer merce aa dita senhora, mandou sua providencia por mensageira a Iupiter rey dos elementos, que fizesse cortes em que se concertassem planetas sinos em favor de sua viagem. Foy representada nos paços da ribeyra na cidade de Lixboa. Era de M.D.XIX.” [2]

 


[1] Garcia de Resende, (1470?-1536), Ida da iffante Dona Beatriz pera Saboya no Livro das obras de Garcia de Resêde que tracta da vida & grandissimas virtudes: bõdades: magnanimo esforço: excelêtes costumes & manhas & muy craros feitos do christianissimo: muito alto & muyto poderoso.. el rey dom João o segundo deste nome: & dos Reys de Portugal o trezeno de gloriosa memoria: começado de seu nascimêto & toda sua vida ate ora de sua morte: cõ outras obras que adiante se seguem. Manoel da Costa o fez em Evora a XXVI dias do mes de Janeiro de mil quinhento & trinta & seys annos.

[2] Gil Vicente (c.1465-c.1536), Cortes de Júpiter, no Livro Terceyro da Copilaçam de toda las obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco livros. Foy impresso em a muy nobre, & sempre leal cidade de Lisboa, por Andres Lobato. Anno M.D. LXXXVI. BND. (pág. 193).

As embarcações na imagem de Lisboa do Civitates de 1572 

fig. 24 – Navios no Tejo. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590) Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv 1572. Civitates Orbis Terrarum Vol. I 1572.

No centro da imagem destacam-se duas naus e, junto ao cais, uma galé.

A nau da esquerda, de três cobertas, tem apenas arvorada a vela redonda do traquete (o mastro pequeno), e a gávea do mastro de proa recolhida.

No mastro grande estão recolhidas as redondas: a vela grande e a gávea.

Estão também recolhidas a latina da mezena (o mastro de popa) e a cevadeira (no mastro horizontal da proa.

Um escaler está junto da nau enquanto outros remam para terra, no que parece ser um desembarque.

fig. 25Uma nau de 3 mastros. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590) Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv 1572. Civitates Orbis Terrarum Vol. I 1572.

A outra nau com 3 cobertas, com dois mastros à popa (mezena e contra-mezena), e por isso, por muitos chamada de galeão.

Apresenta uma espécie de esporão de ataque na proa, e está fundeado e ancorado, aparentemente sem ninguém a bordo. 

fig. 26 - Uma outra nau com dois mastros de mezena. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590) Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv 1572. Civitates Orbis Terrarum Vol. I 1572. 

Um escaler com quatro remadores transporta para terra três personalidades, com um desenho mais detalhado na versão da gravura de Sebastien Münster. 

fig. 27 -  Sebastien Münster, Pormenor de Lisbona. Xilogravura 26 x 33 cm. Cosmographey oder beschreibung aller Länder" 1598 Basel. BND.

Os navios no Tejo na Lissabon do Civitates de 1598. 


fig. 28 – O Tejo e a zona ribeirinha de Lisboa. Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), Lissabon in Civitates Orbis Terrarum 1598.

Dos vários navios escolhemos os dois do primeiro plano.

Uma nau e um galeão fundeados com o velame recolhido.

fig. 29 – Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), Lissabon in Civitates Orbis Terrarum 1598.

E uma outra nau com quatro mastros (como se disse, que alguns chamam de galeão), também fundeada e toda embandeirada. 

fig. 30Pormenor de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), Lissabon in Civitates Orbis Terrarum 1598.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Apontamentos sobre a Lisboa e Sevilha nos séculos XVI e XVII (11)

 

 

Apontamento 11 – Um percurso pelas imagens e escritos sobre Lisboa do século XVI.

 

Nota inicial – Na continuidade destes Apontamentos sobre o século XVI, depois de Sevilha irei ocupar-me de Lisboa.

Não se trata de fazer a história da capital. É apenas uma procura através das representações iconográficas e de alguns textos da época, como se representava, em imagens e pela escrita, a cidade de Lisboa entre os reinados de D. Manuel I (1495-1521) e D. Felipe II de Espanha e primeiro de Portugal (1580-1598).

 

As “Vistas de Lisboa” no século XVI

 As “Vistas de Lisboa” são imagens que, não pretendem um rigoroso realismo, mas que pretendia servir para mostrar e salientar a grandeza da cidade e dos seus valores arquitectónicos.

Por isso, são produzidas vistas que pretendiam afirmar Lisboa como o mais importante porto da Europa.

Assim ao longo do século XVI e serão produzidas diversas “Vistas de Lisboa”, vistas de sul para norte, a partir do Tejo e reflectindo o crescimento e desenvolvimento de Lisboa como grande cidade portuária.

Os poetas

Afirmava Diogo Velho (c.1491- 157?), sobre Lisboa e o país que crescia e enriquecia com os descobrimentos e a Expansão.

Ouro. Alijofar pedraria

Gomas & espeçearya

Toda outra drogarya

Serrecolhe em portugal.

Onças liões alifantes

Monstros & aves falantes

Porcelanas. Diamantes

He já tudo. Muy geral.” [1]

 

E Diogo Velho termina o seu longo poema com

“As novas cousas presentes

Sam danos tam evydentes

Como nunqua outras jentes

Já mays vyrom mundo real.” [2]


Mas, contemporaneamente, constatando este enriquecimento de Lisboa, alguns poetas lembram as consequências que os Descobrimentos trazem ao país e á cidade.

Francisco Sá de Miranda (1481-1558) refere, no início de um longo poema dirigido a António Pereira, Senhor de Basto (1497-1566), assinala estas consequências, num poema que se inicia:

“Não me temo de Castella

Onde guerra inda não soa,

Mas temome de Lisboa

Que ao cheiro desta canella

O Reyno nos despovoa.” [3]

 

Este crescimento urbano de Lisboa, e as consequentes alterações sociais são também apontadas pelo poeta e humanista António Ferreira (1528-1569) - o autor de “A Castro” - em “Poemas Luzitanos” mostrando:

 

“Esta Cidade, em que nasci, fermosa,

Esta nobre, esta chea, esta Lisboa

Em Africa, Asia, Europa tam famosa,

Quam differente em meus ouvidos soa,

Quam diferente a vejo, do que a vê

O sprito enganado, que no ar voa!”  [4]

 

E o seu contemporâneo, Pedro de Andrade Caminha (c.1520-1589), em forma de carta a Francisco Sá de Miranda (1481-1558), elogia a cidade de Lisboa, mas refere as consequências sociais e morais que esse enriquecimento acarreta.

“Louvarão muitos esta gram Cidade,

Esta nobre Lisboa,

Caro Francisco, esta que do Occidente

Com grande nome em toda parte soa,

E soará com graõ nome em toda idade,

Que dá Leis ó Meio dia, e ó Oriente.

Seus espantos verão, suas grandezas,

Seus nobres edifícios

D'obra antiga e moderna, as variedades

Dos estados, das obras, dos officios,

Dos negócios, dos tratos, das riquezas,

Dos costumes, das Leis, e das vontades.

Com alegre louvor veraõ partidas

Daqui armadas nossas,

Prosperas as veraõ depois entradas

Cheas de mil despojos, presas grossas,

Com bandeiras triumphaes ó Ceo erguidas,

Com bandeiras d'immigos derribadas.


Tributos verão vir todos os annos

D'Indos, Arabes, Persas,

E d'outras mil regiões, d'outras mil gentes

De vários nomes, e de Leis diversas,

Conquistadas per nós, nom com enganos,

Com justas armas, com rezoês prudentes.

Veraõ ricos retornos, grossos ganhos

De ricas mercancias,

Qu'esta terra a outras dá, e d'outras acceita.

Novidades veraõ todos os dias

Em que os sentidos e olhos s'achem estranhos,

Inda que o appetito nada engeita.


Tudo isto louvaraõ muitos, e a vida

Toda aqui passariam

Neste inutil cuidado, e gosto vão,

Só d'estas vaidades penderiaõ,

Desprezada de todo e esquecida

Toda outra mais alta occupaçaõ.” [5]

 

Lisboa no início do século XVI

Uma das primeiras imagens, datada de 1505 e do tempo de D. Manuel I (-1521), é a que abre o códice “Chronica do Muito Alto e Muito esclarecido Princípe D. Afonso Henriques. Primeiro Rey de Portugal” de Duarte Galvão (1446-1517).

fig. 1 - Duarte Galvão (1446-1517),"Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe D. Afonso Henriques, Primeiro Rey de Portugal" 1505. códice manuscrito. Museu Conde Castro de Guimarães, em Cascais.

 

fig. 2 - Duarte Galvão (1446-1517), Vista de Lisboa. Pormenor de "Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe D. Afonso Henriques, Primeiro Rey de Portugal" 1505. códice manuscrito. Museu Conde Castro de Guimarães, em Cascais.

 

Debruçada sobre o Tejo, onde navegam embarcações dos séculos XV e XVI, Lisboa, contida pela muralha, apresenta uma edificação compacta, onde sobressaem a Sé, a Alcáçova e a igreja do Carmo.

Junto ao rio, onde está edificado o novo Paço da Ribeira, abre-se o Terreiro do Paço, com o Cais das Pedras e o Pelourinho.

A cidade está cercada por tropas, numa anacrónica representação da Tomada de Lisboa aos Mouros, que segundo o próprio Duarte Galvão, estacionavam a oriente o exército de D. Afonso Henriques e a ocidente os exércitos estrangeiros, que participavam na IV Cruzada, vindos por mar e que se dirigiam para Jerusalém.


Lisboa por volta de 1530

Na Biblioteca da Universidade de Leiden, existe um notável desenho, em 17 folhas, Prospecto de Lisboa, de um autor desconhecido representando Lisboa.

 

fig. 3 - Anónimo. Prospecto de Lisboa c.1530, desenho em 17 folhas, pena e aguada, cor, 75 x 245 cm. Leiden University Libraries.

 http://hdl.handle.net/1887.1/item:291826


Ainda por volta de 1530, D. Fernando (1507-1534) filho de D. João III (1502-1557) encarrega o iluminista Simon Bening (1483 – 1561), de desenhar a Tavoa Primeira dos Reys.

Segundo esclarece Damião de Góis [6] “(…) & mandou a mî hum debuxo da arvore, & tronco de toda esta progenia, desno tempo de Noe, atte ho delrei dom Emanuel seu pai, pera lho mandar fazer de iluminura, pelo mor homem daquella arte que havia em toda Europa, per nome Simão, morador ê Bruges no condado de Flandres. (…) [7]

Nessa publicação “Genealogia dos Reis de Portugal” colaborou ainda António d’Olanda (1480-c.1558?),

 

fig. 4 – Simon Bening (1483 – 1561) e António d’Olanda (1480-c.1558?), Tavoa Primeira dos Reys, Tronco do conde D. Anrique, 1530/34, Fólio 7r da "Genealogia dos Reis de Portugal", MS. 12531, British Library.

 

A imagem para além da árvore genealógica a partir de D. Afonso Henriques, apresenta na parte inferior uma vista da zona ribeirinha de Lisboa, desde Xabregas a Alcântara e que se prolonga pelo lado esquerda da página, mostrando a margem direita do Tejo até Sintra.  

Lisboa em 1571

Em 1571, Francisco d’Olanda (1517-1585), filho de António d’Olanda, publica o conhecido “Da Fabrica que falece ha cidade de Lysboa”.

A publicação abre, significativamente, com uma imagem “Figura de Lysboa”, mostrando “uma princesa em figura da Cidade de Lixboa”. [8]

fig. 5 – Francisco d’Olanda, Figura de Lysboa 176 x 121 cm. 1571 Da Fabrica que falece há Cidade de Lixboa. (fol. 2v). Biblioteca da Ajuda.


Uma jovem com uma coroa de 3 torres, saindo do mar, com um corvo no ombro esquerdo, e transportando nos braços uma caravela onde o outro corvo repousa na popa da embarcação. Uma representação das armas de Lisboa com a barca de S. Vicente e os dois corvos.

São Vicente

Para se compreender as armas de Lisboa refira-se que André de Resende, publica em 1545, Vincentius, Levita et Martyr, um longo poema em latim que se estende por dois livros. O primeiro sobre o martírio de S. Vicente e o segundo sobre a trasladação dos seus restos mortais para Lisboa.

Segundo Gil Clemente Teixeira na sua Dissertação [9] o poema termina com os seguintes versos:

 

(…) Por isso, o senado da nossa

cidade, a ti e à barca santa que transportou Vicente,

tomará por armas, em memória do feito há pouco ocorrido

em Olissipo: o barco e os dois corvos usará como insígnias.” [10]


Tradução de

“Te namque senatus

nostrae urbis, pupimque sacram quae numina uexit

signa sibi faciet, gestat modo Olisipo facti

Mnemosynon, puppem atque pareis insignia corvos.”  [11]

 

Na edição de 1545 do Vincentius Leuita et Martyr, existente na Biblioteca Nacional os versos em latim dizem:

 

“91Gestat modo Olisipo facti Urbs Oli-

sipo im memoriam translationis Divi Vicentij, insi

guia sibi fecit navem, & duos corvos, quórum unus

in puppi residet, alter in prora, esq bodie gestat.

92 Haec signa fidem facient. Nempe in sigilo. Se

Natum enim, & curiae Olisiponen disfcita, his insigni

Bus cera impressis ad fidem faciendam muniuntur.” [12]

 

Numa folha dupla (8v e 9) da Fabrica que falece... está representada a cidade de Lisboa, tendo na parte superior “Lembrãça dos muros e bastiães que falecem ha cidade de Lysboa da pa.te da terra”, e na parte inferior “Doutros baluartes e bastiães da parte do Mar”.

 

fig. 6 – Francisco de Holanda, Lysboa. Da fabrica que Falece a Cidade de Lisboa 1571. Biblioteca da Ajuda. (Fol. 8v e 9.)

 

E Francisco d’Olanda dirigindo-se a D. Sebastião (1554-1578), evoca as realizações do tempo de D. Manuel I e D. João III, e propõe a renovação da cidade, primeiro espiritualmente, e de seguida em três aspectos práticos: defesa da cidade (“Do castelo e bastiães e muros que convem a Lisboa”); monumentalização (“Dos paços de Enxobregas e parque” e outros) e abastecimento de águas (“D’agoa livre”)

 

E evoca “o felicissimo Rei, vosso bisavô, El Rei Dom Manoel, que com o triunfo e victoria da India quasi a renovou de todo, cercando-a da parte do mar com o cais que a rodea, e paços, muito milhor do que pola terra a tinha cercado El Rei Dom Fernando com o seu muro de argamassa que foi uma grande obra, e assi mesmo com o sumptuoso mosteiro de Belem e Torre e com a Misericordia. Ora El Rei vosso avô*, de gloriosa memória, quem duvida, que, se o não atalhara a morte, que houvera de fazer grandissimas obras em Lisboa…” [13] 

[*D. João III (1502-1557), O Piedoso, reinou desde 1521 até à sua morte em 1557.]

 

fig. 7 – Francisco d’Olanda, Lysboa. Pormenor central da figura anterior.

 

O desenho de Simão de Miranda de 1575

No Archivo di Stato di Torino existe um desenho, datado de 1575, com o título de “Ulibone Pars” da autoria de Simão de Miranda, que representa Lisboa vista do Tejo.

fig. 8 - Simão de Miranda “Ulibone Pars” Desenho à pena e aguarelado. In U lisibonae Pars, vol. II, fls. 75,1575 Archivio di Stato di Torino.

 

As vistas de Lisboa publicadas no Civitates Orbis Terrarum de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590)

A Vista de Lisboa publicada em 1572

No reinado de D. Sebastião (1557 a 1578) na edição de 1572 do Civitates Orbis Terrarum de Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), surge uma vista de Lisboa intitulada Lisbona, com uma inscrição “Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv[m], (Olissipo, ou como em inscrições de antigas pedras, Ulysippo, mais conhecida como Lisboa, do Florescente Império de Portugal.)

Esta vista de Lisboa (Olisipo nunc Lisbona), elaborada nos meados do século, é acompanhada por uma outra vista intitulada Cascale Lusitaniae opp (Cascais), onde está desenhada a margem direita do Tejo na entrada da barra.

 

fig. 9 - Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590) Olisipo, sive ut persetustae lapidum inscriptiones habent, Ulysipo, vulgo Lisbona Florentissimum Portugalliae Emporiv 1572. Civitates Orbis Terrarum Vol. I 1572.

A Vista de Lisboa publicada em 1598

Finalmente publicada no ano de 1598, em que morre Felipe II de Espanha (I Primeiro de Portugal), é publicado no Volume V do Civitates Orbis Terrarum, onde figura uma vista de Lisboa “OLISSIPO quae nunc Lisboa civitas amplissima Lusitaniae ad Tagum. Toti Orienttis, et multarum Insularum Aphricaeque et Americae emporium nobilissimum”.

 

Lisboa é desenhada por volta dos anos 70, de um ponto de vista superior, para além de mostrar os principais edifícios numerados numa legenda em Latim, permite reconhecer o tecido urbano (ruas, praças, cais).

 

fig. 10 - Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), Lissabon in Civitates Orbis Terrarum 1598. (a versão em latim do volume I foi publicada em 1572).


[1] Diogo Velho, in Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Impresso por Hermã de Campos, Lisboa,1516. (pág. CCI). BND.

[2] Idem (pág. CCIv)

[3] Francisco de Sá de Miranda (1481-1558), Carta II a António Pereira senhor de Basto in As Obras do Doutor Francisco de Saa de Miranda, a custa de Antonio leite, Mercador de livros, na rua nova. Lisboa M DC LXXXVII. (pág.203).

[4] António Ferreira (1528-1569), A Manoel Sampayo em Coimbra. Carta X Livro I Poemas Luzitanos do Doutor Antonio Ferreira. Dedicados por seu filho Miguel Leite Ferreira, ao Principe D. Philippe nosso senhor. Impresso com licença, Por Pedro Crasbeeck. Em Lisboa M. D. XCVIII. (pág. 152).

[5] Pedro de Andrade Caminha (c.1520-1589), A Francisco Sá de Miranda in Poezias de Pedro de Andrade Caminha, mandadas publicar pela Academia Real das Sciências de Lisboa. Na Officina da mesma Academia Lisboa MDCC XCI. (pág. 203 e 204).

[6] Damião de Góis Chronica do Felicissimo Rei Dom Emanvel, composta per Damiam de Goes, dividida em Qvatro Partes, Em Lisboa em casa de Françsco correa, impressor do serenissimo Cardeal Infante, aos xvij dias do mês de Iulho de 1566. Segunda parte da Chronica. Capitu. XIX. Do nascimento do Infante dom Fernando & das qualidades de sua real pessoa. Fol.33 vs.

[7] O Simão morador em Bruges a que alude Damião de Góis é Simon Bening (1483 – 1561), de facto considerado o melhor iluminista da época. O manuscrito que Simon Bening executa em colaboração com António de Holanda, da Árvore com a genealogia dos Reis de Portugal, nunca foi acabado e muitas das armas e brasões não se encontram realizadas. Nas margens algumas cenas de batalhas, torneios, peregrinações e cidades associadas aos diversos reis e rainhas. Encontra-se na British Library, em Londres.

[8] Gil Vicente (c.1465-c.1536), Nao damores, in Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco Livros. Empremiose em a muy nobre, & sempre leal Cidade de Lixboa, em casa de Ioam Alvarez impressor del Rey nosso senhor. Anno de M. D. LXII. (Ver adiante).

[9] Gil Clemente Teixeira, Entre textos: da epopeia Vincentius Leuita et Martyr de André de Resende a Os Lusíadas de Camões. Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pelo Professor Doutor Belmiro Fernandes Pereira. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto 2018.

[10] Tradução de Gil Clemente Teixeira, Entre textos: da epopeia Vincentius Leuita et Martyr de André de Resende a Os Lusíadas de Camões. Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pelo Professor Doutor Belmiro Fernandes Pereira. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto 2018. (pág. 191).

[11] Gil Clemente Teixeira, Entre textos: da epopeia Vincentius Leuita et Martyr de André de Resende a Os Lusíadas de Camões. Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pelo Professor Doutor Belmiro Fernandes Pereira. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto 2018. (pág. 190).

[12] André de Resende. L. Andreas Resendivs. Vincentius, Leuita et martyr, Impressum in adibus  Ludovicum Rhotboigum

typographum ac bibliopolae regij. Olisipone M.D.XLV. (pág. 60). BND  http://purl.pt/15168

[13] Francisco d’Olanda, Da Fabrica que falece ha Cidade de Lysboa. Por frãçisco dolãda Anno de 1571 Biblioteca da Ajuda (fol. 4) in Joaquim de Vasconcellos, Renascença Portugueza IV Imprensa Portugueza Porto MDCCCLXXIX