domingo, 3 de novembro de 2024

Imagens da Cidade do Porto há (volta de) cem anos 7

 


O edifício da Casa Inglesa

fig. 1 – O projecto apresentado em 27 de Fevereiro de 1920. Fachada Rua de Passos Manoel e Rua de S.ta Catharina. Escala 001 x 100. AHMP.




fig. 2 - O projecto apresentado em 27 de Fevereiro de 1920. Corte Transversal. (1:100) Planta Topografica. (1:1000 Detalhe das retretes. (1:10). Vãos do Telhado. (1:100). AHMP.

Em 27 de Fevereiro de 1920 Manuel José Pereira Leite Júnior requer à CMP a construção de um edifício “no terreno que possui no angulo formado pelas ruas de St.ª Catarina e Passos Manoel, lado oriental, conforme o projecto e memória descriptiva junta (…)”. [1]

O projecto e a respectiva memória descritiva são assinados pelo arquitecto Agostinho Ribeiro de Ferreira (? - ?).

Sabe-se que o autor do projecto é o arquiteco Francisco Oliveira Ferreira (1884 -1957), mas provavelmente - por nessa altura ainda não possuir o diploma de arquitecto que só obterá em 1925 - o projecto apresentado na CMP está assinado por um arquitecto diplomado. Uma prática que se manterá ao longo do século XX, já que só se obtinha o diploma alguns anos depois de exercer a profissão e elaborar alguns projectos.

 

Para melhor se perceber a prática da arquitectura no início do século XX, transcreve-se algumas passagens da memória descritiva.

Assim: “(…) As cantarias serão de Granito fino e mármore, sendo de mármore as colunas que fazem parte das fachadas, bem como alguns motivos decorativo.

Como os pavimentos do 1º e 2º andares teem de ficar amplos devido a destinarem-se a negocio, levará vigas de ferro servindo de travação ao prédio, bem como nos vãos do rez do chão. As esquadrias exteriores serão de madeira de castanho e ferro forjado, para receberem vidraça, cristal e vidro fantasia.” (…).

 

E como curiosidade a memória descriptiva termina da seguinte maneira:

“As retretes serão modernas com syphão e o mais hygienicas, sendo de autoclysmo e d’harmonia com as leis de salubridade em vigôr.

Simplificando direi que toda a obra será executada d’harmonia com as leis salubridade das construções e demais posturas municipaes em vigôr.

Saude e Faternidade

Porto, 1 de Março de 1920.” [1].

Este projecto é aprovado em 27 de Março de 1920 pelo então Presidente da Câmara, Armando Marques Guedes (1886/9-1958), maçónico, advogado, professor universitário, jornalista e político (foi deputado de 1915 a 17 e de novo de1925 a 26, e Ministro das Finanças em 1925).

Numa nota importante do processo de licenciamento, os serviços camarários lembram que o projecto não cumpre o alinhamento e que “É para notar que a fachada d’esta edificação voltada á rua Passos Manoel avança cerca de 1, 50 m. sobre o terreno municipal”. [2]

 

 

Para melhor se compreender a dificuldade do lote e a necessidade de cumprir o alinhamento, mostra-se o cruzamento das ruas de Santa Catarina e de Passos Manuel em 1892.

Na planta de Telles Ferreira de 1892 está cartografado o cruzamento das ruas de St.a Cahtarina com Passos Manoel (assim escrito) e os alinhamentos previstos. (fig. 3)

Note-se que a rua Passos Manuel terminava a poente, na rua de Sá da Bandeira e a nascente, no Largo de S.to André (futura praça dos Poveiros).

Pinho Leal no seu Portugal Antigo e moderno v.7. Lisboa 1876 (pág.477) descreve assim a

“Capella de Santo André—no logar do mesmo nome (antiga feira da herva) próximo e ao O. do passeio publico de S. Lazaro. Foi demolida ha uns 15 ou 16 annos, e d'ella só existe a memoria no referido largo, que ainda conserva o nome do santo.” [3]

fig. 3 - A esquina das ruas de Santa Catarina e Passos Manoel. Pormenor da Planta de Telles Ferreira escala 1:5000

 No levantamento à escala 1:500, nota-se a divisão da propriedade (parcelas pequenas), os muitos logradouros ajardinados e os trilhos do transporte eléctrico então existente. (fig.4)


fig. 4 - A esquina das ruas de Santa Catarina e Passos Manoel. Quadrícula 278 da Planta de Telles Ferreira escala 1:500.


[1] Requerimento de Manuel José Pereira Leite (pág. 27) Processo de 27/02/1920. Arquivo Histórico Municipal do Porto AHMP

[2] Memória descriptiva do projecto apresentado em 1920. Processo de 27/02/1920. (pág. 28 e 29). AHMP

[3] Processo de 27/02/1920 (pág. 34) AHMP.

[4] Pinho Leal, (Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal, 1816-1884), Portugal Antigo e Moderno, vol.7. Lisboa 1876. (pág.477).


O projecto de 1922

Por esta razão do alinhamento com o projectado traçado para a rua Passos Manuel ou porque a construção do edifício sofreu uma larga contestação dando “lugar a reclamações no local, e em consequência delas a Ex.ma Camara mandou intimar o requerente a apresentar novo projecto a fim de subordinar as obras a outro alinhamento, que deu entrada em 6 de Outubro de 1922 (…)” [1].

 Assim, na Quarta-feira 27 de Setembro de 1922, o mesmo Manuel José Pereira Leite Júnior em requerimento à CMP, assinado por Francisco Oliveira Ferreira (1884 -1957), “como aditamento ao projecto aprovado e a que se refere a licença n. 306 de 27 de Março de 1920, apresenta o projecto junto d’harmonia com o alinhamento ultimamente resolvido por essa Ex.ma Câmara para a construção a realizar no terreno que possue junto às ruas de Santa Catarina e Passos Manoel…” [2] (fig. 5).

 



fig. 5 – Aditamento ao projecto a que se refere o Requerimento do Ex.mo Sr. Manoel José Pereira Leite Júnior. Fachada da Rua Passos Manoel. Rua de S,ta Catarina. Corte por A.B. Escala 1:100. (pág.2). AHMP.

Este novo projecto de 10 de Janeiro de 1923 não assinado, em tudo idêntico ao anterior, apenas obedecendo ao alinhamento exigido pela CMP, apresenta agora os cálculos referentes á estrutura (pág. 3 a 40).

Em 3 de Março de 1923 o projecto é definitivamente aprovado sendo Presidente António Joaquim de Sousa Junior (1871-1938), médico e político republicano deputado ao Congresso Constituinte em 1911, e Ministro da Instrução. 

A licença é emitida pelo engenheiro civil e de minas António Pinto de Miranda Guedes (1875—1937), engenheiro, então chefe da divisão de Obras da Câmara Municipal do Porto, e que em 1927 nomeado director dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento (SMAS) então criados. 

O lapso de tempo também é explicado pelo Requerente em documento anexo ao processo: “Quando o Requerente ia dar começo ás obras de execução daquele projecto, no verão de 1921, pessoas mal-intencionadas, abusando do fácil impressionismo das massas populares, promoveram no local ruidosas manifestações de desagrado, que procuraram atingir a Vereação nos seus intuitos do alinhamento e aformoseamento daquele local (…)”

“Em consequência de tais manifestações e de acordo com a Ex.ma Camara, o Requerente suspendeu as mesmas obras, tanto mais que esperava no entretanto consegui judicialmente o despejo do seu inquilino, um dos principais instigadores da arruaça. (…)” [3]



fig. 6 – A implantação do edifício e o alinhamento da rua Passos Manuel na Planta de Telles Ferreira de 1892.


[1] Requerimento de 06/10/1922. AHMP.

[2] Aditamento de 27 de setembro de 1922 ao Processo de 1920 (pág. 235) AHMP.

[3] Aditamento de 27 de setembro de 1922 ao Processo de 1920 (pág.260). AHMP


As obras

Uma extraordinária fotografia de Alvão dos anos 20 mostra a rua de Passos Manuel e o aspecto das demolições necessárias para o alinhamento e a construção do edifício da Casa Inglesa.

 


 

fig. 7 - Foto Alvão n.º 24 in Fotografia Alvão Clichés do Porto 1902-2002 ed. Casa Alvão Porto 2002

 

Ainda se circulava pela esquerda (até 1928) e há apenas um automóvel estacionado. Um modelo típico da década de 20, com capota amovível, estribo e faróis dianteiros sobre os para-lamas e rodas sem raios.





fig. 8 – Pormenor da fotografia anterior

 

Julgo tratar-se de um Citroën Torpedo dos anos 20 quer pela descrição das características visíveis quer porque o stand da Citroën será em 22 de Fevereiro de 1930, o primeiro inquilino do rés do chão do prédio (antes da Casa Inglesa). O stand da Citroën situava-se então na rua de Sá da Bandeira como se vê na foto de Alvão (ver fig. 9 e fig. 10), tendo à porta do Stand um conjunto de automóveis com matrículas da série N-7200 a 7600.



fig. 9 –Rua de Sá da Bandeira 335. c.1929. Foto n.º 67 in A Cidade do Porto na Obra do fotógrafo Alvão. Ed. Fotografia Alvão. 1984.



fig. 10 - Pormenor da imagem anterior.

 Na fig.11, dois carros da escola de condução do Automóvel Clube de Portugal (ACP), quando criou em 1935 a sua Escola de Condução no Porto, com o Citroën Torpedo de 1926 atrás de um Ford 4 portas de 1932 com a matrícula N-12449, estacionados, julgo eu, junto ao jardim da Praça 9 de Abril (Arca d’Água), jardim inaugurado em 9 de Abril de 1928.

 



 


fig. 11 - Os carros da Escola de Condução do ACP.


O edifício 

Quanto ao edifício em 22 de Fevereiro de 1923 a “Comissão de Estética considera o presente projecto em excelentes condições artísticas e digno de ser aprovado em presença do alinhamento da sua fachada para a rua Passos Manoel (…)” [1]

O edifício não seguirá exactamente o projecto, sendo abandonado o torreão do gaveto

O arquitecto coloca os acessos nos topos do edifício: no cunhal da rua de Santa Catarina, situa-se o acesso nobre ao piso térreo, e no topo nascente da Rua Passos Manuel, a entrada com a escada de acesso aos pisos superiores.

 Na revista A Arquitectura Portuguesa de Fevereiro de 1930 com o título “Prédio com duas frentes para as ruas de Santa Catarina e Passos Manuel na cidade do Porto”

Pode ler-se:

“Mais um interessante projecto do distinto arquitecto do Porto, Ex. mo Sr. Francisco de Oliveira Ferreira, temos hoje o prazer de publicar, sendo indiscutivelmente um grandioso e belo que vai engrandecer o aspecto estético daquela cidade que ultimamente se tem modificado duma forma

notável e progressiva.”

E o articulista refere que:

“Todo o edifício é de granito fino lavrado e destina-se a rendimento, tendo no rez do chão um só amplo estabelecimento com cave e outros andares com grandes salões e escritórios.”

 

“O edifício tem além das lojas três andares e mansarda, havendo no cunhal uma torre que se eleva alto dando um feliz remate a esta construção.”

 

“Os progressos da engenharia com a difusão do beton armado e outros processos de construção facilitam extraordinariamente a ideação moderna de forma que, pode-se afoitamente afirmar, que não há dificuldade que se não possa vencer, não há pensamento que não seja possível materializar, embora pareça impraticável.”

 

“De há muito que o Porto se vem desenvolvendo pondo-se sob o ponto de vista estético num plano que o vai aproximando das grandes cidades modernas (…)”  “A obra está em via de conclusão estando até já arrendado o estabelecimento para Stand da “Citroën”.” [2]



[1] Aditamento de 27 de setembro de 1922 ao Processo (pág. 263) AHMP

[2] A Arquitectura Portuguesa, revista mensal de Arquitectura e Construção ano XXIII – 2ª série Lisboa Fevereiro de 1930 n.º 2. (pág. 1).


E, nos anos 30, a loja de vestuário Casa Inglesa veio ocupar com grande sucesso o espaço comercial do rés-do-chão do edifício, que assim passou a ser conhecido como o edifício da Casa Inglesa.

Esse sucesso traduz-se na publicação nos anos 30, da partitura da canção “Espera-me na Casa Inglesa” de Júlio Pontes. Na capa um desenho do edifício. (fig. 12).



fig. 12 - Capa da partitura da Espera-me na Casa Inglesa one step marcha música de Júlio Pontes, c.1930. Coleção Arquivo Helder Pacheco. AHMP




fig. 13 – O edificio numa foto com a Casa Inglesa.

 

A minha ligação ao edifício.


Quando estudante de Arquitectura na Escola de Belas Artes, junto com outros colegas estudantes de arquitectura nas Belas Artes, frequentando vários anos do curso, entre 1967 e 1970, alugamos duas salas do 3º andar do edifício para aí instalar um atelier para a elaboração dos trabalhos escolares. Uma voltada para a rua Passos Manuel em frente da porta lateral do Majestic (sala A) e a outra na esquina de Santa Catarina (sala B).

Essas salas, tinham sido ocupadas pelo pintor e professor Augusto Gomes que as libertou por razões de saúde.

Estas salas-ateliers funcionaram como verdadeiras escolas pela colaboração entre os estudantes, com visitas esporádicas de alguns professores.



fig. 14 – O edifício da Casa Inglesa com a indicação da salas ocupadas pelo grupo de estudantes de arquitectura.

 

E muitos outros por estas salas passaram, substituindo os que então iam concluído o curso.



O Marcolino Relojoeiro

O espaço da Casa Inglesa acabou por ser ocupado em 2011/14 pela vizinha relojoaria Marcolino.

O Marcolino Relojoeiro instalou-se em 1937, num estabelecimento projectado pelo arquitecto Homero Ferreira Dias (1904-1960), na rua Passos Manuel junto ao edifício da Casa Inglesa.


fig. 15.– Fachada da loja Marcolino na rua Passos Manuel nos anos 60 do século XX.

 

 


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