3 - O percurso de Coimbra ao Porto por via terrestre na
viragem dos séculos 18 e 19
Os transportes
Partindo do
princípio que Manoel Fernandes Tomaz, se viesse para o Porto por terra, não se
deslocaria de coche, restava-lhe o cavalo, a liteira e a sege, entre os meios
de transporte nos quais se podia aceder à cidade pelo Norte, Oriente e Sul.
Henri L'Éveque (1769-1832), no álbum, publicado em Londres em 1814,
Costume of Portugal , apresenta
um conjunto de desenhos de transportes em Portugal comentados, entre os quais
um cavaleiro.
A cavalo
fig. 8
- Henri L'Évêque, Costume of Portugal,
Colnaghi & Co. Londres 1814. (pág.27).
Sobre O Cavaleiro
aponta L’Évêque:
“O Cavaleiro representado nesta gravura está sentado
numa sela rasa que desde há alguns anos substituiu a sela de manejo cujo uso
estava generalizado, mas conserva os estribos de madeira. São como se vê uma
espécie de caixa na qual o pé do Cavaleiro entra e de onde facilmente sai. Se
esta forma de estribos não é elegante, este inconveniente tem, por outro lado,
enormes vantagens: nunca, qualquer que seja o acidente, os pés do Cavaleiro
ficam presos e estão sempre protegidos da humidade.” *
*Nota R.F. - O estribo usado pelos
cavaleiros na corrida de toiros à portuguesa, conserva este material e esta
forma, sendo por vezes protegidos e adornados por uma placa metálica e
trabalhada.
[“Le Cavalier représenté dans
cette gravure est assis sur une selle rase qui depuis quelques années a
remplacé la selle de manége dont jadis l'usage étoit général, mais il conserve
encore les étriers de bois. C'est, comme on le voit, une espèce de caisse dans
laquelle le pied du Cavalier entre et d'où il sort avec la plus grande
facilité. Si la forme de ces étriers n'est pas élegante, ce léger inconvénient
est racheté par des avantages bien essentiels: jamais, quelqu'accident qui
arrive, les pieds du Cavalier ne peuvent rester embarrassés dans ces étriers,
et toujours ils y sont à couvert de l'humidité.”]
De burro
A alternativa ao
cavalo era de povoação em povoação alugar um burro como escreve Costingan no seu Sketches of Society and
Manners in Portugal, quando em
viagem do Porto para Lisboa os cavalos tiveram de parar por cansaço.
“Em todas as vilas e
aldeias da estrada entre Porto e Santarém, onde embarcámos, existem sempre para
alugar uns miseráveis burros que, contudo, nos transportam num ápice, para a
povoação mais próxima, e chegando aí por mais duramente que lhes batamos eles
recusam-se a dar mais um passo, mas existem sempre outros burros que podeis
montar até à localidade seguinte…”
“ In all the towns
and villages on the road between Porto and Santarem ,where we embarked, there
are miserable little asses constantly to be hired, which however run with you
like lightning to the next town, and were you beat them to death, would not to
go a step farther, but there again you always find fresh ones ready to take you
up;…”
Naa vinheta de Giuseppe Piattoli para ilustrar o
provérbio toscano “Crede essere
sopra un gran cavallo, ed è sopra un tristo asino”, (Julga estar montado num
belo cavalo, mas está em cima de um miserável burro), que como o português “passar de cavalo a burro”, ignora a
utilidade (e a dignidade) desse resistente e trabalhador animal.
fig. 9
- Giuseppe Piattoli active (1743-1823), Crede essere sopra un gran cavallo, ed è
sopra un tristo asino. ca. 1800, Estampa n.º 40. Gravura e aguarela 28,9 x
20,8 cm.in "Proverbi toscani espressi in
figura da Giuseppe Piattoli pittore fiorentino", I parte gravuras
verticais.
O provérbio está escrito numa legenda sob a
imagem, tendo na parte inferior a seguinte quadra:
O tu che sempre di te
stesso altero
Ti credi andar de più
famosi al paro,
Credendo cavalcar
nobil Destriero,
Tu premi il dorso a sordido
Somaro.
[Ó tu que sempre te orgulhas ti próprio
achas que pareces o mais famoso,
Acreditando montar um nobre Corcel,
Vais montado num humilde Burro.]
De liteira
A
liteira de dois machos era o veículo mais utilizado para as deslocações no
interior de Portugal.
fig. 10
- Henry L'Êveque, The litter. In Costume of Portugal, 1814.
A liteira segundo Henri L’Évêque
Henri L’Évêque no seu álbum, desenha e descreve, minuciosamente,
a Liteira:
“Nas províncias de Portugal, que ficam para
além de Coimbra, a norte do Mondego, o terreno é geralmente tão áspero e tão
acidentado, os caminhos são tão íngremes e tão estreitos, e as curvas tão
abruptas, que é muitas vezes muito difícil aí passar um carro. (…)
Viaja-se, por isso, a cavalo, ou melhor, sobre
mulas, que têm patas muito mais seguras. Mas as senhoras, os enfermos, os
idosos, que não suportam o movimento das montadas, são obrigados a recorrer à
Liteira, cujo uso, tão comum em tempos na Europa, ainda se preserva nesta parte
de Portugal.”
[“Dans les provinces de
Portugal, qui sont au-delà de Coimbra, au nord du Mondego, le terrain est en
général si âpre et si montueux, les chemins sont si roides et si étroits, et
les tournans si brusques, qu'il est souvent bien difficile d'y faire passer une
voiture. (…) On y voyage donc ordinairement à cheval, ou, pour mieux dire, sur
des mulets, qui ont le pied beaucoup plus sûr. Mais les dames, les infirmes,
les vieillards, qui ne peuvent supporter le mouvement de cette monture, sont
obligés de recourir à la Litière, dont l'usage, si commun jadis en Europe, se
conserve encore dans cette partie du Portugal.”]
E prossegue na sua
descrição da gravura:
“É, como pode ser visto nesta gravura, uma
caixa que se assemelha muito à de uma liteira levada por homens, exceto que as
dimensões são maiores, e em vez de ser carregada por dois homens, ela é carregada
por duas vigorosas mulas que a ela são atreladas.
Com uma porta de cada lado da caixa, o seu
interior é acolchoado, forrado de tecido ou seda e fechado por cortinas e às
vezes por espelhos. Duas pessoas sentam-se à vontade, posicionando-se não uma
ao lado da outra, mas opostas uma à outra. Essa situação de tête-à-tête, o
balanço muito suave da liteira, a própria lentidão de sua marcha, pois ela mal
percorre de 20 a 25 milhas durante o dia (5 a 6 léguas no país), tudo parece
convidar o viajante a gozar o longo percurso com os prazeres da conversa e a
efusão da confiança: é o que tem levado a dizer que a liteira é, por
excelência, a viatura dos amigos e dos amantes, que sempre têm muito a dizer um
ao outro e que nunca se cansam do prazer de se ver e encontrar”.
[“C'est, comme on le voit dans
cette gravure, une caisse qui ressemble beaucoup à celle d'une chaise à
porteurs, excepté que les dimensions en sont plus grandes, et qu'au lieu d'être
portée par deux hommes, elle l'est par deux mulets vigoureux qu'on y attèle.
Une portière s'ouvre de chaque côté de la caisse, dont l'intérieur est
rembourré, doublé en drap ou en soie, et fermé par des rideaux, et quelquefois
par des glaces. Deux personnes y sont assises à l'aise, en se plaçant, non pas
à côté, mais vis-à-vis l'une de l'autre. Cette situation en tête-à-tête, le
balancement très-doux de la machine, la lenteur même de sa marche, car elle ne
fait guères, dans la journée, plus de 20 à 25 milles (5 à 6 lieues du pays),
tout semble inviter les voyageurs à charmer la longueur de la route par les
plaisirs de la conversation et les épanchemens de la confiance : c'est ce qui a
fait dire, que la litière étoit, par excellence, la voiture des amis et des
amans, qui ont toujours tant de choses à se dire, et qui ne sont jamais
rassasiés du plaisir de se voir.”]
E termina salientando
o ruído das campainhas e dos guizos que assinalam a marcha da liteira:
“Os arreios das mulas estão carregados com um
grande número de sinos e guisos, que o animal sacode e faz soar enquanto
caminha. A continuidade desse ruído agudo não pára de ofender o ouvido; mas ele
torna-se mais suave pela habituação, e o seu inconveniente é mais do que
compensado pela vantagem que dele se obtém. Em primeiro lugar, avisa os que
negligentes ou afastados, que as mulas e a liteira estão paradas; e a sua
sonoridade anuncia ao longe a aproximação da liteira a todos os que se
aproximam, sejam cavaleiros, carroças, ou bestas de carga: o que, nos estreitos
caminhos, nos desfiladeiros ou nas encostas das montanhas, dá-lhes tempo para
se arrumarem nas bermas da estrada, em espaços concebidos para o efeito, de
forma a permitir a passagem da liteira, que só com grande dificuldade pode
recuar, e cuja envergadura é, por vezes, suficiente para ocupar toda a largura
do caminho, que em alguns sítios é demasiado estreito.”
[“La bride des mulets est
chargée d'un grand nombre de clochettes et de grelots, que l'animal agite et
fait sonner en marchant. La continuité de ce bruit aigu ne laisse pas
d'offenser l'oreille; mais l'accoutumance l'adoucit, et l'incommodité qu'il
donne est plus que compensée par l'avantage qu'on en retire. D'abord, son
interruption avertit le conducteur négligent ou écarté, que la marche des
mulets est arrêtée ; et son éclat annonce au loin l'approche de la litière à
tous les objets qui viennent au-devant, tels que cavaliers, charrettes, bêtes
de somme: ce qui, dans les défilés des chemins, dans les gorges ou sur les
penchans des montagnes, donne à ceux-ci le temps de se ranger sur les côtés de
la route, dans des espaces ménagés à dessein, afin de laisser passer la litière,
qui ne sauroit reculer que très-difficilement, et dont la voie suffit
quelquefois pour occuper toute la largeur du chemin, tant il est étroit dans
quelques endroits.”]
A liteira segundo William
Granville Eliot
William Granville
Eliot (1775-1855) um oficial inglês que participou na Guerra Peninsular no seu Treatise of Defence of Portugal,
publicado em 1810, também refere a liteira de mulas.
“Nas zonas mais montanhosas
do país, é utilizado um veículo semelhante a uma liteira, transportado da mesma
maneira por duas mulas; assim, poderá ser transportado do Porto para Lisboa,
numa distância de 52 léguas, em sete dias, sendo ao ritmo de cerca de trinta
milhas por dia. Será conveniente começar a negociar para toda a jornada, visto
que nenhuma alteração será feita na estrada; e também munir-se de um bom manto,
um cobertor e alguns alimentos.”
[“Over the more mountainous parts of the
country, a vehicle resembling a sedan chair, and carried in the same manner by
two mules, is used; by this means you may be conveyed from Oporto to Lisbon, a
distance of 52 leagues, in seven days, being at the rate of about thirty miles
a day. It will be expedient at starting to bargain for the whole journey, as no
relays are to be met with on the road; also to be provided with a good cloak, a
blanket, and some eatables.”]
fig. 11
- Liteira 9,5 x 21,6 cm. Museu Nacional dos Coches.
A liteira segundo William Kinsey
E William Morgan Kinsey (1788-1851) , no seu Portugal Illustrated Letters, publicado
em 1828, não só refere a liteira como apresenta duas imagens de liteiras em
viagem.
“Os viajantes, que não
têm condições de suportar os solavancos em estradas ruins, sob um sol a pino, e
que não gostam dos passos desiguais de uma mula, que geralmente produzem febris
sensações, costumam alugar uma Liteira,
que se assemelha a uma cabine com cadeira dupla, a qual é suspensa por fortes
varões entre duas mulas, a primeira das quais é sempre conduzida pelo guia nas
partes difíceis da estrada. O preço de uma Liteira varia de doze a quinze
xelins por dia, sem contar as gorjetas e a comida do arrieiro.”
[Travellers, who are unequal to support the
jolting on bad roads, under an almost vertical sun, and who dislike the uneven
paces of a mule, which generally produce feverish sensations, usually hire a Liteira, which resembles a double
Bath-chair, and is suspended by strong poles between two mules, the foremost of
which is always led by the guide in difficult parts of the road. The price of a
Liteira varies from twelve to fifteen shillings a day, exclusive of gratuities
and the food of the muleteer.]
Uma das imagens mostra uma liteira atravessando
a Serra da Labruja em Ponte de Lima e Kinsey anota o seguinte comentário:
“A serra de la Bruga, que
tivemos de atravessar a caminho de Ponte de Lima, foi considerada, na recepção
do governador, como infestada de bandidos, pelo que aceitamos a sua oferta de
uma pequena escolta; mas não teríamos corrido nenhum grande perigo, já que
esses homens nos acompanhavam com as suas armas.”
[The Serra de la Bruga, which we had to cross in our way to Ponte de
Lima, was reported at the governor's party to be infested with banditti, and
therefore we accepted his offer of a small escort; but no great extent of
danger could have been apprehended, as the men attended us with their side-arms
only.]
fig. 12
- Imagem do Portugal
Illustrated Letters London, 1828 do rev. William Morgan Kinsey (1788-1851).
(pág.277).
Na segunda vinheta, Kinsey mostra uma liteira com dois
passageiros sentados face a face, e acompanhados por viajantes a cavalo e uma
mula transportando bagagens. Descem a encosta por um perigoso caminho.
fig. 13
- rev. William Morgan Kinsey
(1788-1851). Travellers in Portugal Letter IX 1837 in Portugal
Illustrated Letters London, 1829. (pág. 241).
A liteira segundo James Murphy
Nos
finais do século XVIII, o arquitecto irlandês James Cavanah Murphy (1760-1814)
foi incumbido de realizar o levantamento do Mosteiro da Batalha.
Para
isso deslocou-se de barco de Inglaterra até Portugal onde desembarcou na cidade
do Porto em Dezembro de 1788.
No
início de 1789 empreende uma viagem por terra para sul até à Batalha (onde se
deteve por cerca de 3 meses), tendo então seguido por outros itinerários no sul
do país.
Dessa
sua deslocação por Portugal publicou um livro Travels in Portugal in the years of 1789 and 1790 .
Mais
adiante referiremos o percurso de Murphy do Porto até Coimbra – no sentido
inverso de Manoel Fernandes Thomaz – mas que pode dar uma ideia, apesar de
alguns melhoramentos nas estradas devidos às manobras militares da Guerra
Peninsular, da viagem de Manoel Fernandes Thomaz quando em 1817 se desloca para
o Porto, para tomar posse do lugar de desembargador do Tribunal da Relação.
Da
sua estadia em Portugal, James Murphy publica ainda em 1797 A General View of the State of Portugal , um
relato, não tão crítico, mas mais objectivo e menos adjectivado, onde insere, na
página 146, uma curiosa gravura Viajando
de Liteira representando uma liteira que transporta uma jovem, atenta ao
muleteiro que cavalgando de costas para o caminho vai cantando e tocando uma
guitarra. A estampa é referida
no texto como People of fashion, and
delicate persons, usually travel in litters, as represented in Plate IX.
A estampa IX numa
cópia da Biblioteca Nacional de Portugal.
fig. 14
- James Murphy, Travelling in a Litter. Plate IX London, Publishid Jan.1.st by Cadell & Davies – Strand. água-tinta
17,1 x 21,7 cm. London 1797. B.N.P.
Nota à gravura - Cadell & Davies era uma editora constituída entre
1793 e 1836 por Thomas Cadell Júnior (1773-1836), filho do editor Thomas Cadell (1742–1802)
e por William Davies (1764 -1820).
A liteira segundo Camilo Castelo
Branco
Ainda sobre a liteira de machos, Camilo Castelo Branco
(1825-1890), em Vinte Horas de Liteira
de 1864, recorda uma viagem de liteira, entre Vila Real e o Porto, lembrando o
tilintar das campainhas: “a liteira dos dous machos pujantes e das
ciocoenta campainhas estridulas, (…)
a liteira das minhas saudades, porque se
embalaram n'ella as minhas primeiras peregrinações; porque, dos postigos de
uma, vi eu, fora das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas;
porque o tilintar das suas campainhas me alegrava o animo, quando a toada festiva
me interrompia as cogitações da tarde por essas estradas do Minho e Traz-os-montes.”
fig. 15
- Domingos Sequeira (1768 - 1837)
- Liteira e muleteiro Desenho 25 x 21 cm Museu Nacional dos Coches.
Escrevendo que a “voragem do progresso” a fará
desaparecer face à ferrovia, “o hórrido fremir do wagon, que bate as crepitantes
azas de infernal hippogrypho.” e à melhoria das estradas que “o
camartello e o rodo escalaram o agro e penhascoso das serras,” obrigaram
que “a liteira, acossada pelo
Char-à-bancs,” apenas fosse utilizada “nas
veredas pedregosas, e acoutou-se á sombra do solar alcantilado e inaccessivel
ao rodar da sege. Ao passo que o vapor talava os plainos, galgava ella,
espavorida, os desfiladeiros para esconder-se.”
O percurso de liteira de Camilo Castelo Branco
Camilo Castelo Branco usa essa viagem entre Ovelhinha “uma
póvoa escondida nos fraguedos do Marão”, (uma aldeia situada junto a Amarante), e a Rua da Boavista no Porto
(capítulo XXIV), como pretexto para o diálogo com o amigo.
E refere, ao longo do
romance, as sucessivas paragens “Pernoitámos
em Amarante, numa estalagem, onde eu, anos antes, tinha visto três belas
criaturas” (...), e no capítulo seguinte
“apeámos na estalagem de Penafiel” e refere ainda a passagem por Baltar e
São Roque da Lameira.
Na carta de Portugal de Emiliano Augusto de Bettencourt
(1825-1886), precisamente de 1864, assinalámos a povoação de Ovelha
junto a Amarante.
fig. 16
- Emiliano Augusto de Bettencourt (1825-1886), Carta de
Portugal com a divisão administrativa por districtos e concelhos / Coordenada
sobre os trabalhos mais importantes existentes na Repartição d'Obras Publicas,
por E. A. de Bettencourt; grav. por J. F. M. Palha, ligth de C. Maigné. -
Escala 1:700000, 0,00001 = 7. - [S.l.] : Lith. de C. Maigne, [ca 1864]. -
1 mapa : p&b ; 86,00x59,20 cm, em folha de 93,00x70,00 cm. BNP.
fig. 17
– Pormenor da carta de Portugal de 1864 com a povoação de Ovelha.
De sege
A viagem de Coimbra ao Porto ainda podia, embora dificilmente,
ser efectuada de sege, um veículo do século XVIII de meia caixa com dois
lugares e duas ou quatro rodas, puxado por uma parelha de cavalos ou mulas, que
embora ligeira e fácil de manobrar, era sobretudo usada nas deslocações
urbanas.
fig. 18
- A.P.D.G. - “Sketches of Portuguese Life, manners,
costume and caracther”, London printed for Geo. B. Whittaker, Ave Maria Lane,
1826.
De facto, dado o estado das estradas no início do século
XIX, a sege só era utilizada em viagem em condições muito especiais, como
ilustra William Kinsey.
fig. 19
- William Morgan Kinsey (1788-1851), Sege.Mules, and driver going up a step
ascent. Letter III 1827 in Portugal
Illustrated Letters London, 1829. (pág.90).
Henri L'Évêque (1814) Costume of Portugal,
Colnaghi & Co. Londres 1814. Com 50 gravuras
e águas-tinta representando vários costumes portugueses e 53 páginas de texto
em inglês e francês explicativos de cada uma dessas imagens.
Arthur William Costigan, Letter XXIV, 1779 in Sketches
of Society and Manners in Portugal in a Serie of Letters from Arthur
William Costigan, Esq. Late a Captain of the Irish Brigade in the Service of
Spain, to his Brother in London. Vol. II. Printed for T. Vernor, Birchin-Lane
Cornhill. London 1787. (pág. 17).
William Granville Eliot
(1775-1855), A Treatise on The Defence of
Portugal with a Military Map of The Country To which is added A Sketch of the
Manners and Costumes of the Inhabitants, and Principal Events of the Capigns
under Lord Wellington in 1808 and 1809. Printed for T. Egerton, Military
Library. Withehall London 1810. (pág.128).
O reverendo William
Morgan Kinsey (1788-1851), esteve em Portugal em 1827. A partir do seu Diário,
das cartas que escreveu ao poeta e dramaturgo Thomas Haynes Bayly (1797-1839) e
ainda de outras fontes, escreveu um livro que publicou em 1828 com o título Portugal
Illustrated, com gravuras de G. Cooke e J. Skelton. A segunda edição que
utilizamos é de 1829.
William Morgan Kinsey
(1788-1851), Portugal Illustrated
Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various
engravings of costumes, landscape scenery, &c. Treuttel, Würtz, and
Richter, Soho Square London 1828.
James Cavanah Murphy (1760–1814), A General View of the State
of Portugal Containing a Topographical description there of in
which are inclued, na account of the physical and moral together with
observations on the animal, vegetable and the whole compiled from the best
portuguese writers, and illustrades with plates. . Printed fot T. Cadell Jun.
and W. Davies in the Strand London 1798.
4 - O percurso entre
Porto e Coimbra
Como já afirmámos nos finais do século XVIII, o arquitecto irlandês James
Cavanah Murphy (1760-1814) foi incumbido de realizar o levantamento do Mosteiro
da Batalha e por isso deslocou-se a Portugal.
Empreende
então uma viagem do Porto até à Batalha (onde se deteve por cerca de 3 meses),
tendo então seguido por outros itinerários no sul do país.
Dessa
sua deslocação por Portugal publicou um livro Travels in Portugal in the years of 1789 and 1790 .
Se
bem que Fernandes Thomaz se tenha deslocado de Coimbra para o Porto interessa-nos
desse relato de Murphy, o percurso inverso (do Porto até Coimbra), já que
apesar de algumas poucas alterações ditadas sobretudo pelas deslocações
militares na Guerra Peninsular, manteve-se no geral o tipo de transporte, o
estado da estrada e os locais de prenoita dos viajantes e a mudança dos animais
Murphy
narra, esse percurso com referências diárias, desde Sexta-Feira, 23 de Janeiro
de 1789, até à sua chegada a Coimbra, 4 dias depois.
Por
isso acompanhemos essa viagem de Murphy.
O Mapa
Na
folha n.º 1 do mapa da Península Ibérica de 1790 desenhado por Tomás
López de Vargas Machuca (1730-1802) e Michael Votésky (?-?), assinalamos os
locais que são referidos no relato de Murphy. (Porto, Carvalhos, Arrifana,
Albergaria, Sardão, Avelãs (?), Mealhada, e Coimbra).
fig. 20 - Tomás López de Vargas Machuca (1730-1802) e Michael
Votésky (cartógrafos), Franz Anton Schraembl (1751-1803) (editor) Folha n.º 1 de
Neueste generalkarte von Portugal und Spanien1790
nach den astronomischen Beobachtungen und Karten des Herrn Thomas Lopez /
verfasst von Herrn Michael Voteskymapa em 6 seções 72 x 53 cm cada folha. Institut Cartogràfic i
Geològic de Catalunya.
fig. 21
- Pormenor
do mapa com o percurso entre Porto e Coimbra com as
localidades assinaladas e numeradas, referenciadas por James Murphy.
Partida do Porto (1)
Escreve
Murphy em 23 de Janeiro:
“Assim que
atravessamos o Douro, juntaram-se-nos três outras carruagens que regressavam a
Lisboa; duas delas estavam vazias, a outra tinha sido contratada por um senhor
da província do Minho.
Este senhor tem sido
o meu topógrafo na estrada; e temo que os nomes de alguns lugares, não
encontrados nos mapas portugueses, façam parte da corrupta ortografia local,
onde se fala um dialecto entre o português e o espanhol.
Fomos também
acompanhados, no primeiro dia de viagem, por quatro galegos, contratados pelos
arrieiros para os ajudar a resgatar os seus veículos e mulas dos obstáculos que
se interpunham.”
[“As soon as we crossed the Douro, we were
joined by three other carriages returning to Lisbon; two of them were empty,
the other was engaged by a gentleman from the province of Minho.
This gentleman has been my
topographer on the road; and I fear that the names of some places, not to be
found in the Portuguefe maps, partake of the corrupt orthography of his
province, where in they speak a dialed: between the Portuguese and the Spanish
languages.
We were also accompanied, in
the first day's journey, by four Galician labourers, employed by the muleteers
for the purpose of assisting them in rescuing their vehicles and mules from the
obstrudions that lay in the way.” ]
E Murphy prossegue salientando:
“É extraordinário que tão perto da segunda cidade do reino não haja um
caminho a que possámos chamar de estrada; é verdade que alguns esforços foram
feitos para abrir uma, mas foi tão mal planeada que na primeira enchente
provocada pelas chuvas a maior parte dela foi varrida.
Não teríamos podido
prosseguir sem a ajuda desses muleteiros, visto que as mulas caíam a cada momento,
ou ficavam atoladas na lama, onde teriam permanecido, se não fossem os esforços
de toda a companhia.”
[“It is extraordinary, that so near the second city in the kingdom,
there is not a perch of what we should call a road; some efforts, it is true, have been made to
form one, but fo ill contrived, that the first torrent hasnswept the greater
part of it away. We should not have been able to proceed without the aid of
these labourers, as the mules were every moment tumbling, or embarrassed in the
mud, where they must have remained but for the united efforts of the company.”]
Os Carvalhos [2]
Relata Murphy a sua
chegada aos Carvalhos onde se instalará na Estalagem.
“Às quatro horas da
tarde chegamos a Dos Carvalhos num estado miserável; mulas e almocreves,
galegos e passageiros, todos com os trajes, salpicados da cabeça aos pés.
A Estalagem dos
Carvalhos ou Caravansary of the Oaks, dista
cerca de uma légua do Porto, e de onde partimos às 9 horas da manhã, concluiu
esta jornada.”
[“At four o'clock in the afternoon we reached
Dos Carvalhos in a miserable plight; mules and muleteers, Galicians and
passengers, all in the same livery, bespattered from head to foot, Estalagem
dos Carvalhos or the, distant about one league from Oporto, which we left at
nine o'clock in the morning, closed this day's flage.”]
A Estalagem
Nos Carvalhos, onde se acolhe, Murphy desenha a Estalagem com um majestoso carvalho e um carro de bois.
fig. 22
- Estalagem
dos Carvalhos in Murphy A View of the Caravansary of the Oaks. Plate II pág.20.
A Estalagem apresenta
uma arquitectura rural e popular. O edifício tem um rez-do-chão que se prolonga
em alpendre o qual se abre para um pátio. Num corpo de uma das extremidades do
edifício colocavam-se os estábulos. No corpo principal a porta da entrada e a
sala das refeições. O piso superior era reservado para os quartos.
Sobre esta estalagem também
escreve William Kinsey.
“(…) Chegámos a Vila Nova, onde a estalagem não sendo
muito convidativa, dirigimo-nos então ao adro da igreja, e espalhámos os
fragmentos heterogêneos de nossa cesta de provisões nos degraus de uma cruz de
pedra, como fizemos posteriormente, em várias ocasiões, onde o ar livre sempre
preferimos ao ambiente sujo e confinado das barracas de rua, que por aqui se
distinguem universalmente por ostentarem uma inscrição na placa da
"Companhia Geral do Alto Douro".
[“(…) we reached Villa Nova,
where the estalagem not being very inviting, we betook ourselves to the churchyard, and spread the
motley fragments of our provision basket on the steps of a stone cross, as
subsequently, in numerous instances, where the open air challenged our
preference to the filth and confined atmosphere of the way-side winehuts, which
in these parts are universally distinguished by bearing an inscription on the
sign of " Companhia Geral do Alto Douro."]
E referindo-se às
estalagens, para além de uma gravura de um edifício não identificado, escreve com
uma britânica ironia:
“O edifício de uma Estalagem tem na frente um
espaço aberto, ao lado do qual existe uma porta que conduz ao curral escuro
para as mulas, - pois não merece o nome de estábulo, - e do outro lado uma
espécie de masmorra, lúgubre e escura, na qual são colocados, lado a lado,
numerosos sacos grosseiros recheados de palha, ou folhas de milho, para os
arrieiros e peões. Uma escada de pedra, invariavelmente coberta de lixo, e mais
frequentemente cercada por mendigos robustos e importunos, a cujas mãos
estendidas e às súplicas fervorosas é quase impossível de resistir, leva a um
salão, ou refeitório, comum a todos os que chegam, tendo em cada lado portas
para os diversos armários, pois não podem ser chamados de quartos de dormir, com
os quais, no entanto, os viajantes comuns têm de contentar-se em ocupar, ou
melhor, compartilhar com os nativos percevejos.”
[“The
arrangement of an Estalagem is generally to have a open space in front, on one
side of which is a door leading into the dark receptacle for the mules, — for
it does not deserve the name of a stable, — and on the other is a sort of
dungeon, dreary and dark, in which are placed, side by side, numerous coarse
bags stuffed with straw, or leaves of Indian corn, for muleteers and foot-passengers.
A stone staircase, invariably covered with filth, and most frequently beset by
sturdy and importunate beggars, whose clasped hands and earnest entreaties it
is almost impossible to resist, leads up to a landing-place, or eating-room, common to all comers, on either side of which
are doors to the different
cupboards, for they cannot be called bed-rooms, which nevertheless ordinary
travellers are contente to occupy, or rather share with the native persevejos.”]
fig. 23 – William Morgan Kinsey (1788-1851), Estalagem or Portuguese
Inn. In Portugal
Illustrated Letters. (pág. 214).
Na verdade, já antes William Granville Eliot no seu Treatise of Defence of Portugal, publicado em 1810, havia criticado
as estalagens portuguesas.
“As
Estalagens, ou pousadas, mesmo em algumas das melhores cidades, são
miseravelmente sujas e deploráveis, não oferecendo um melhor alojamento; uma
cervejaria na Inglaterra é um luxo em comparação com a melhor delas. Um oficial
raramente estará sujeito a esse inconveniente; o seu uniforme é um passaporte
suficiente; e, a pedido do magistrado-chefe * do local, ele receberá uma
autorização.
*Nas cidades, o
magistrado-chefe tem o título de Corregedor, tendo jurisdição sobre determinado
distrito. Nas menores cidades e vilas as autorizações são emitidas por um
Juiz-de-Fora, Juiz do Povo ou Capitão Mor. Este último é uma espécie de
magistrado militar, tendo o comando do Levée en Masse, normalmente com a
patente de Tenente-Coronel.”
[“The Estalagens, or inns, even in some of the
better towns, are miserably dirty and wretched, affording no better
accommodation; a pot alehouse in England is a luxury compared to the best of them. An officer will seldom be subject to this
inconvenience; his uniform is a suficiente passport; and, on application to the
chief magistrate* of the place, he will be provided with a billet.
* In the cities the chief magistrate is entitled
Corregidor, having the jurisdiction of a certain district. In the smaller towns and villages billets are procured from the
Juiz-de-Fora, Juiz de Povo, or Capitao Mor. The latter is a kind of military magistrate, having the command of the
Levée en Masse, most commonly with the rank of Lieutenant Colonel.”]
E prossegue William
Eliot, referindo-se à restauração.
“Há uma abundância de Casas de Café em cada
cidade; estas, exceto alguns em Lisboa e no Porto, são literalmente casas de venda de
café, limonada, bebidas espirituosas e nada mais.
[“There are abundance of Casas de Café in every
town; these, except some few in Lisbon and Oporto,
are literally houses for selling coffee, lemonade, spirits, and nothing more.”]
E refere ainda as
Casas de Pasto:
“As Casas de Pasto e Casas de Comer ou
restaurantes, são idênticas às Estalagens no que diz respeito à sujeira e falta
de higiene; tudo é servido com uma abundância de azeite e alho. O único prato
saboroso ao paladar da maioria dos ingleses é o Caldo de Galinha, composto por
uma galinha cozida com um pouco de toucinho gordo, uma cebola e um pouco de
arroz, servidos juntos no caldo; nele é introduzido um pouco de óleo rançoso e
uma salsicha de alho forte, quando não é proibido.”
[“The Casas de Pasto and Casas de Comer or
eating-houses, are of the same description with respect to nastiness and filth,
as the Estalagens; every thing is served up with a profusion of oil and garlic.
The only palatable dish to the taste of most Englishmen is a Caldo de Galinha,
composed of a fowl boiled with a bit of fat bacon, an onion and some rice,
served up together in the broth; into this a little rancid oil and a strong
garlic sausage is introduced, if not forbidden.]