segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 11

 

René Magritte (1898-1967) La reproduction interdite, 1937. Óleo s/tela 79 × 65 cm. musée Boijmans Van Beuningen Roterdão.

Nota -O livro pousado na prateleira “Aventures d’Arthur Gordon Pym” é de Edgar Poe (1809-1849), na tradução de Charles Baudelaire (1821-1867). Michel Levy Frères Libraires – Éditeurs Paris 1858.

aquele que já sou e que serei não sendo

 Sed fugit interea fugit irreparabile tempus” Virgílio*

 

No mar amargo e vento incerto onde navego

reaparecem receios que ficaram escondidos

tempo curto para que se mudem as certezas

lugar onde moram tantos medos clandestinos.

 

O enigma da tarde que aparece nos espelhos

imagens da verdadeira verdade ou da fingida

com sonhos enevoados e pesados pesadelos

que se mais duram menos tempo são na vida.

 

Estas rudes mãos que apenas um nada tendo

com que se traçam vários círculos imperfeitos

que no mar se criam e se esfumam pelo vento.

 

Nunca pareça e não pereça que o modo lento

de receitar escondidos remédios sem defeitos

para aquele que já sou e que serei não sendo.

 

*“Mas entretanto o irreparavel tempo / Nos vae fugindo”

Publius Vergilius Maro ( 70 -19 a.C.) As Georgicas de Virgilio. Traduzidas do original em verso endegasyllabo com anotações exclusivamente agronómicas e zootechnicas por João Felix Pereira. Agronomo, medico, emgenheiro civìl e professor jubilado do Lyceo Nacional de Lisboa.Typographia Universal Lisboa 1875 (vs. 283 pág. 53).


 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 10

 



Thomas Eakins (1844-1916) Sailing c.1875. óleo s/tela 81 x 117,5 cm. Philadelphia Museum of Art.


o mar é da liberdade o grito mais fecundo

Homme libre, toujours tu chériras la mer!  Charles Baudelaire *

 

Aparelhar o barco, a mão firme no leme

medir o sol, caçar a vela, asa levantada.

Pelo vento azul na luz pálida que treme

partir com a vela grande toda enfunada.

 

Ir mapeando mares, mareando tempos.

Onda saltando à proa a talhar as águas,

inefável paz desses seguros momentos,

ao zarpar e esquecer todas as mágoas.

 

Saber se o sol encobre a dourada maré

ao virar de bordo sem receio nem medo

qual vento venta vagueando pelo mundo.

 

Que horizonte ousar para sem o alcançar

revelar o mais escondido do seu segredo:

o mar é da liberdade o grito mais fecundo.

 

*Charles Baudelaire (1821-1867), L’Homme et la mer XIV in Les Fleurs du Mal 2ª ed. Poulet-Malassis et de Broise Éditeurs, Paris 1861. (pág.35 e 36).

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 9

 


Adolfo Bellocq (1899-1972). El demagogo, 1925. Zincografia. 23 x 26 cm. Museu de Artes Plásticas Eduardo Sívori. Museu de arte de Buenos Aires.

longe é tempo incerto. Perto está a ânsia de mandar

“- Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos fama!” Camões *

 

Para aí andam muitos com barbas bem crescidas

fazendo restolhos de promessas juízos e opiniões

discursos parecendo limpos, eruditos, eloquentes,

filigranas de palavras escorreitas e belas citações.

 

Mas se são tão elaborados, eficazes e insinuantes  

falta-lhes a modesta verdade grave e a pertinência,

já que falam muito, pouco dizem, nada convencem

e não se conseguem afirmar na sua independência.

 

Ainda assim há quem procure alcançar no imediato,

no teatro do mundo um papel tão desejado e imune,

um poder mesmo que modesto, pequeno, particular.

 

Para o que tudo vale, seja a intriga ou o vicioso pacto

não prevendo nem o longo e médio, só o tempo curto.

Longe é tempo incerto. Perto está a ânsia de mandar.

 


*Luís de Camões (1524-1580), Os Lusíadas Canto III est. CXV. Lello & Irmão Editores Porto 1970. (pág. 1236).


sábado, 10 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 8

 





Ergon Schiele (1890-1918). O Abraço 1917. Óleo s/tela 100 x 170 cm, Belvedere Palace Museum Vienna

nova jogada

 

O fogo lento que é permanente nos amores

dura mais tempo e as chamas não magoam.

O fogo curto da paixão em ápice se extingue

na cinza de rubras brasas que nos queimam.

 

De noite o misterioso escuro nunca distingue

o que é amor o que é paixão o que é espanto.

Dois corpos acesos que enlaçados em desejo

um cobrindo o outro em suave e morno manto.

 

Mas a maior paixão, a mais audaz cedo acaba,

roída nos enganos e nas virtudes que apregoa,

em enfeites amáveis, sentimentos que exagera.

 

Se como teimosos ousamos tentar nova jogada

é indiferente como se acaba, sempre se perdoa.

Importa é sentir de novo o prazer que assevera.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 7

 


Edward Munch (1863-1944).  Separação 1896 óleo s/tela 96 x 127 cm. Museu Munch, Oslo. Google Art Project

 

Comovidos dias esquecidos

Quando ainda sonhava nesses cabelos de vento

e a luz sustinha o peso da sombra que esperava

não era um engano ou invenção do pensamento

mas o epítome e o fim da paixão que se acabava.

 

Em todo o abandono se descalça uma despedida

a qual torna necessário saber perder a esperança

só nos resta esperar que essa esperança perdida

o tempo a acalme depois, e além dessa mudança.

 

Na monótona chuva que belisca a janela pequena

onde tremem finas gotas fugidias que, encerradas

e passageiras, escorrem fazendo cantar os vidros,

 

Os ébrios lamentos dessa presença d’água serena

em tantos sonhos de pausa amarga desencontrada

só os recordaremos em comovidos dias esquecidos.