terça-feira, 30 de janeiro de 2024

poemas recuperados 6

 

Pablo Picasso (1881-1973).  “Pomba da Paz”, 28. 12. 61. litografia s/papel 48 x 60 cm. coleção particular.


tudo se acaba em versos em quase nada

 

A floresta iluminada suaviza a sombra

no rumor distante do declinar da tarde.

Só o brando murmúrio daquela pomba

me eleva o quotidiano até à eternidade.

 

Vagueio com esse outro eu, um inimigo

a quem desafio neste tempo tão incerto.

Tropeço caindo em mim como o castigo

de longe ir buscar o que se abriga perto.

 

Desse diálogo comigo, sempre consigo,

na seara da alma descobrir algo perdido

aquele meu outro eu que foi um inimigo

com quem me batia em combate antigo.

 

Travei com esse avesso lutas esquecidas

de onde restaram ruínas, terra queimada

por fim já cansados lambendo as feridas

tudo se acaba em versos em quase nada.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

poemas recuperados 5

José de Ribera (1591-1652), Filósofo com um espelho 1ª metade do século XVII. Óleo s/tela 113 x 89 cm. Rijksmuseum Amesterdão.


Espelho

"Para hum homem se ver a si mesmo, saõ necessarias tres cousas: olhos, espelho & luz. Se tem espelho, & é cego, não se póde ver por falta de olhos; se tem espelho & olhos, & he de noyte, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, ha mister espelho & ha mister olhos."  Padre António Vieira *


Nesse espelho em que me vejo esquecido

está esse outro eu, um quase semelhante.

É outro eu, o negativo, simétrico de sentido,

a vigiar-me fixo nesse espaço equidistante.

 

Sou eu ou apenas quem eu penso que sou?

Sou eu ou apenas minha figura mal-olhada?

Ou é o amável sussurro em que se esconde

o cansaço do olhar em lágrima tão salgada?

 

Esqueço que nesse espelho como em janela

onde, como amigo que não sou, ele espreita.

Desconfio-me da invertida visão, porque nela

sempre se vai trocando esquerda com direita.

 

Pesando o que me vejo e o que me fui vendo

no outro eu com quem sempre me confundo,

o que fui, o que senti, em tudo o que fui sendo,

patética intimidade em que sempre me afundo.

 

Podes tu? – diz o outro eu, em tom assaz duro,

aprender esses ocultos mistérios e os segredos

que só eu guardo como teu eco. O íntimo escuro,

dos restos já gastos de murmurantes pesadelos?

 

Farto de me ver em tais andanças não respondo.

Olhos nos olhos, eu e o outro, qual o mais velho,

não tendo como lhe responder, assim de pronto,

apago a luz. logo se vai o eu-maldito do espelho.

 

* Padre Antônio Vieira (1608-1697), Semam da Sexagesima Prégado na Capella Real 1655 in Sermoens do P. Antonio Vieira da Companhia de Jesus. Prégador de Sua Alteza Primeyra parte dedicada ao Principe N.S. Na Officina de Ioam da Costa, Lisboa MDCLXXIX. (pág. 18).

 

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

poemas recuperados 4

Fernando Lanhas (1923-2012). Cais 44 1944, óleo s/tela 31 x 45 cm. Museu Nacional de Arte Contemporânea. Museu do Chiado. Lisboa.

porto seguro

Vai-se a frescura a sombra o perfume e o abrigo

se as árvores esquecerem os frutos que pariram

e se todas elas no seu conjunto correrem perigo

dê-se-lhes descanso de tudo isso que passaram.

 

No mundo que vivemos de prazeres e dissabores

somos nós que os queremos e que os desejamos

é por finos corredores que as mercedes e favores

só em nós acharemos mais aquilo que buscamos.

 

Pois é tão grande toda a carga e a vida trabalhosa

planos, intervalos, quebras, saltos, o que se quiser

se a plena luz nos dilui e nos faz exatos no escuro.

 

Não se faça mais amarga toda a batalha temerosa

que de ano a ano vamos elaborando para perceber

só com um bom vento se pode arribar porto seguro.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

poemas recuperados 3


Alexey Gavrilovich Venetsianov (1780-1847). O pastor adormecido 1823/26. Óleo s/tela s/d.San Pietroburgo, Gosudarstvennyj Russkij Muzej . State Russian Museum, St. Petersburg, Russia.

sonho bonito

Naquele sonho que nunca aconteceu

onde sonhei que sonhava a realidade

dele acordei cansado de tal descanso

sonhando antever a ilusória liberdade.

      

Perdida aquela mão simétrica da arte

fosse pela intuição fosse pela ciência

tudo o que sabia no todo ou em parte

desfez-se no silêncio ruiu a inocência.

 

Agora nem breves sonhos consigo ter

e na cabeça oca nem um brilho nasce

clarão ardente, inefável, quase infinito.


Sono de pedra nunca dará para se ver

o que nunca quisera ver e o que não vi.

Sonhei que não sonhei. Sonho bonito.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Poemas recuperados 2






António Cruz (1907-2007). Paisagem.Aguarela 1945. Cat. da Exposição 2007-2008 Museu Nacional Soares dos Reis. Ed. Coop. Árvore CRL.


ventos livres passando devagar


Ouço um silêncio como um hino sem um canto

há uma ténue dor que adivinho e que não sinto

já tempo foi que pelas faces me corria o pranto

o dolente desencanto recantos do meu labirinto


Havia então esse olhar que de puro e excelente

quase entrevia a rápida mudança de momentos

a pureza inatingível das imagens que na mente

são como as verdades só duram curtos tempos


O furor febril de tantos espinhosos desenganos

que dão sombras indecisas vagas e dormentes

das ilusões criadas que acabamos por lamentar


Só o que nos faz ser então demasiado humanos

é um fresco incontinente frio que vem do oriente

soprando esses ventos livres passando devagar.

sábado, 13 de janeiro de 2024

alguns poemas recuperados



(Adriano) Sousa Lopes (1879-1944). Luz nas águas óleo s/madeira 39 x 47 cm. Museu do Chiado- Museu de Arte Contemporânea

grisalhos me vão ficando os cabelos

 

“Talvolta ritorna

nell'immobile calma del giorno il ricordo

di quel vivere assorto, nella luce stupita.”

Cesare Pavese [1]

 

Agora que vão ficando tão grisalhos os cabelos

tornando-me na vida mais sábio do que sabido

meditando no que sou, uma manta nos joelhos

sou já menos áspero e rugoso que liso e polido.


Aquelas árvores belas e esguias como colmos

coando a bela luz de âmbar tão fina e delicada

lembram o que já fomos e o que já não somos

trocando artifícios pela simplicidade rebuscada.

 

Se nada invento transformo apenas o inventado

falida a vontade de escalar o cimo da montanha

procurando ar puro para um mais suave respirar

 

Assente a urbana poeira em calma e sossegado

é na remota praia que o mar suavemente banha

que o dourado da manhã me permite descansar.

 



[1] Cesare Pavese (1908-1950), La Notte (1938) in Lavorare stanca. 1943 Giulio Einaudi Milano.

"E por vezes volta

na calma imóvel do dia a recordação

daquele viver absorto, na espantosa luz."


II

aquela fotografia pálida

Aos meus irmãos já desaparecidos

 

As folhas dos plátanos cobrem os longos braços da cidade

pelas alamedas douradas um rumor se ouve e se entende

é apenas um leve sopro das almas, um sussurro da idade

suavemente cai o vento no tempo de água que se estende.

 

Aquela fotografia pálida lembra o reino tão doce da infância

quando no fácil despertar das coisas simples se amadurece.

Retrato sereno e calmo, quase esquecido, como em criança

se vê a vida e com a idade em espessa neblina desaparece.

 

Vejo-me diferente do que era e revejo-me no que agora sou

O sol e a lua, o dia e a noite, eram então o equilíbrio perfeito

nessa louca inocência como se loucura não fosse sabedoria.

 

somando qualidades e malefícios de agora ser no que estou

o que já fui, o que estou sendo, o que virei a ser, por defeito

este é o meu retrato quando a alma se passeia em nostalgia.