quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 

Aspectos do Porto na segunda década de oitocentos 2

 Episódio 2

 

 

A deslocação por terra entre Coimbra e o Porto

 Em 1817 Manoel Fernandes Thomaz (1771-1822) chega ao Porto vindo sul, para tomar posse do lugar de desembargador da Relação.

 Como se mostrou no episódio anterior este seria este o aspecto do Porto para quem chegava.

fig. 1 Henri L’Eveque (1769-1832), Vue de Ia Ville et du Port de Porto. H. L’Evêque. d. London P.ed 1817.

As estradas

“Ville au bout de la route et route prolongeant la ville: ne choisis donc pas l'une ou l'autre, mais l'une et l'autre bien alternées.”  [1]

Para se deslocar de Coimbra para o Porto pode ter feito a viagem por terra, viagem então particularmente difícil, já que era sujeita a assaltos e, sobretudo, sem estradas dignas desse nome, já que, quando D. Maria I (1734-1816) subiu ao trono (em 1777), o país não possuía estradas.

O Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Mello 1699-1782) apenas mandara fazer uma estrada até à sua propriedade em Oeiras, e a Companhia dos Vinhos do Alto Douro mandou abrir algumas estradas, no Douro.

Assim D. Maria l mandou construir em 1788, uma estrada de Lisboa ao Porto, mas que apenas se construiu até Coimbra.

Com a construção desta estrada surgiu um serviço regular de trans­portes para passageiros utilizando os carros de transporte do correio, a mala-posta, á semelhança do que já existia noutros países europeus.

A mala-posta partia da porta do Correio Geral na Calçada do Combro em Lisboa ao mesmo tempo que partia de Coimbra uma outra no sentido inverso.

As viagens realizavam-se às segundas, quartas e sextas e as mala-posta encontravam-se e estacionavam na estalagem de Porto de Mós.

Como os poucos passageiros que nela viajavam, tinham como destino a Universidade de Coimbra, a carreira terminou em 1804.

 

Como em 1820, data da Revolução liberal, confirma Adrien Bablbi:

No reinado de D. Maria, construiu-se com grandes custos a estrada de Lisboa a Coimbra, sendo que o troço chamado Alto de Rio-Maior pode ser comparado ao que na Itália, França, Alemanha e Inglaterra oferecem de melhor. A estrada que vai de Lisboa às fortalezas de San-Julião e Cascaes por Oeiras, junto ao Tejo, é realmente bonita; o mesmo se pode dizer da que vai de Lisboa a Colares via Cintra, e que um ramal termina em Mafra; daquela que de Lisboa por um lado a Caldas da Rainha, e por outro a Santarém, e daquela que do Porto conduz a São João da Foz.

[Sous la reine Marie on construisit à grands frais le chemin de Lisbonne à Coimbra, dont la partie dite Alto de Rio-Maior pourrait être comparée à ce que l'Italie, la France, l'Allemagne et

l'Angleterre offrent de beau en ce genre. La route qui mène de Lisbonne aux forteresses de San-Juliào et de Cascaes par Oeiras, le long du Tage, est vraiment belle; on pourrait en dire autant de celle qui va de Lisbonne à Colares par Cintra, et dont une branche aboutit à Mafra; de celle qui de Lisbonne conduit d'un côté à à Caldas da Rainha, et de l'autre à Santarem, et de celle qui de Porto conduit à San-Joào da Foz.] [2]

 Aguardava-se a abertura da estrada até ao Porto, mas as Invasões Francesas vieram adiar tal desígnio.

As principais vias de comunicação no interior do país eram então os rios.

 

1 - As estradas em Portugal no início do século XIX

 

Sobre esta falta de estradas em Portugal ou da sua falta de qualidade, apesar de algumas excepções, pronunciaram-se os viajantes militares ou civis na transição do século XVIII para o século XIX.

 Balbi também denuncia.

“As estradas em Portugal estão num estado tão deplorável, afirma o eloquente redactor de O Portuguez, que o viajante corre sempre o risco de partir o pescoço.

Pode-se imaginar o quanto esta falta de comunicações prejudica o comércio interno, a agricultura e a civilização; todas as comarcas e quase todas as cidades parecem constituir um reino separado, como no tempo dos Mouros. A nossa própria experiência e a informação que temos recolhido de várias localidades, obrigam-nos a adoptar a opinião deste O Portuguez; acrescentaremos ainda, que tendo nos comprometido a ir de Coimbra ao Porto na mesma carruagem que nos tinha trazido de Lisboa a Coimbra, em vez de fazermos este caminho como habitualmente fazemos em liteira, pagamos três vezes mais, e estivemos em contínua angústia temendo pela vida daquilo que de mais caro temos no mundo. Podemos até dizer, sem medo de exagerar, que a maioria das estradas do reino são apenas caminhos locais, que são transitáveis ​​apenas para pequenas carroças.”

[Les routes en Portugal sont dans un état si déplorable, dit l'éloquent rédacteur du O Portuguez, que le voyageur est toujours en danger de se rompre le cou.

On peut concevoir combien un tel défaut de communications doit entraver le commerce intérieur, l'agriculture et la civilisation; chaque comarca et presque chaque ville semblent faire un royaume séparé comme du temps des Maures. Notre propre expérience et les informations que nous avons prises sur plusieurs localités, nous ſorcent à adopter l'opinion de ce Portugais; nous ajouterons même, qu'ayant entrepris d'aller de Coimbra à Porto dans la même calèche qui nous avait conduit de Lisbonne à Coimbra, au lieu de faire ce chemin comme on le fait ordinairement en litière, nous avons versé trois fois, et nous avons été dans des angoisses continuelles pour la vie de ce que nous avons de plus cher au monde. On peut dire même, sans craindre d'exagérer, que la plupart des routes du royaume ne sont que des chemins de traverse, qui ne sont praticables que pour les petites charrettes.] [3]

 

E William Morgan Kinsey (1788-1851) [4], no seu Portugal Illustrated Letters, publicado em 1828, resume o estado das estradas portuguesas na frase:

 Como alguém já disse é mais fácil conduzir um navio até ao Brasil do que conduzir uma mula de Lisboa ao Porto.”

 [It has been said that a Portuguese can steer a ship to Brasil with less difficulty than he can guide his mule from Lisbon to Porto.] [5]

 



[1] Victor Segalen (1878-1919), Conseils au bom voyageur in Stèles (1914). 4.e edition. Les Éditions G. Crès & C.ie. Paris 1922. (pág. 99). Bibliothèque nationale de France.“Cidade no fim da estrada e estrada que prolonga a cidade: por isso não escolha uma nem outra, mas alternadamente uma e outra.”

[2] Adrien Balbi (1782-1848), “Essai statistique sur le royaume de Portugal et d'Algarve comparé aux autres états de l’Europe,et suivi d’un coup d’oeil sur létat dês Sciences, dês Lettres et dês Beaux-Arts parmi les portugais dês deux hémisphères” Chez Rey et Gravier, Libraires, Paris 1822. (pág.475).

[3] Adrien Balbi (1782-1848), “Essai statistique sur le royaume de Portugal et d'Algarve comparé aux autres états de l’Europe,et suivi d’un coup d’oeil sur létat dês Sciences, dês Lettres et dês Beaux-Arts parmi les portugais dês deux hémisphères” Chez Rey et Gravier, Libraires, Paris 1822. (pág.474).

[4] O reverendo William Morgan Kinsey (1788-1851), esteve em Portugal em 1827. A partir do seu Diário, das cartas que escreveu ao poeta e dramaturgo Thomas Haynes Bayly (1797-1839) e ainda de outras fontes, escreveu um livro que publicou em 1828 com o título Portugal Illustrated, com gravuras de G. Cooke e J. Skelton. A segunda edição que utilizamos é de 1829.

[5] rev. William Morgan Kinsey (1788-1851), Portugal Illustrated Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various engravings of costumes, landscape scenery, &c. Letter IV. Treuttel, Würtz, and Richter, Soho Square London 1828. (pág.116).


2 - Os transportes terrestres no início do século XIX

 Até ao aparecimento em Portugal da ferrovia, e o seu desenvolvimento na segunda metade do século XIX [1], os transportes por terra eram efectuados a cavalo (mula ou burro), de liteira urbana (transportada por homens), de liteira de duas mulas, por carro de bois ou por carruagem (coche ou sege).

 No quadro atribuído a Nicolas (Louis-Albert) Delerive (1755-1818), representando o Embarque para o Brasil do Príncipe Regente em 1807, podemos apreciar os transportes existente à época.

 

fig. 2 - Nicolas Delerive (1755-1818), Embarque para o Brasil do príncipe regente D. João VI em 27 de Novembro 1807. Óleo s/ tela 62,5 x 87,8cm - Museu Nacional dos Coches.

 Na tela de Delerive vemos os transportes fluviais e marítimos, que trataremos num próximo episódio.Atrás do bergantim real, um barco de água acima, que se nota pelas duas características que o identificam: a longa verga apoiada no mastro inclinado para a frente e a proa em bico. Nele 5 marinheiros trepam pela enorme verga. Outros carregam a embarcação com pertences da família real para os transportarem aos navios ingleses que a conduziram ao Brasil fundeados ao fundo. A Torre de Belém identifica a paisagem do Tejo.

 

fig. 3 - Pormenor de Embarque para o Brasil do príncipe regente D. João VI em 27 de Novembro 1807.

 Do lado direito, o pintor representou os diversos tipos de transporte terrestre: o carro de bois, a sege, o coche, a liteira, e o cavalo.

 

O carro de bois


fig. 4 - Pormenor de Embarque para o Brasil do príncipe regente D. João VI em 27 de Novembro 1807.


A sege


fig. 5 - Pormenor de Embarque para o Brasil do príncipe regente D. João VI em 27 de Novembro 1807.

 

O coche

 

fig. 6 - Pormenor de Embarque para o Brasil do príncipe regente D. João VI em 27 de Novembro 1807.

 

 

O outro coche e as liteiras

 

fig. 7 - Pormenor de Embarque para o Brasil do príncipe regente D. João VI em 27 de Novembro 1807.

 

 



[1] Ver eng. Carlos Manitto Torres (1885-1961), A evolução das Linhas Portuguesas e o seu significado ferroviário in Gazeta dos Caminhos de Ferro n.º 1681, Ano LXX, Janeiro de 1958. (pág. 9 a 12).


3 - O percurso de Coimbra ao Porto por via terrestre na viragem dos séculos 18 e 19

Os transportes

 Partindo do princípio que Manoel Fernandes Tomaz, se viesse para o Porto por terra, não se deslocaria de coche, restava-lhe o cavalo, a liteira e a sege, entre os meios de transporte nos quais se podia aceder à cidade pelo Norte, Oriente e Sul.

 Henri L'Éveque (1769-1832), no álbum, publicado em Londres em 1814, Costume of Portugal [1], apresenta um conjunto de desenhos de transportes em Portugal comentados, entre os quais um cavaleiro.

 

A cavalo

 

fig. 8 - Henri L'Évêque, Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814. (pág.27).

 

Sobre O Cavaleiro aponta L’Évêque:

“O Cavaleiro representado nesta gravura está sentado numa sela rasa que desde há alguns anos substituiu a sela de manejo cujo uso estava generalizado, mas conserva os estribos de madeira. São como se vê uma espécie de caixa na qual o pé do Cavaleiro entra e de onde facilmente sai. Se esta forma de estribos não é elegante, este inconveniente tem, por outro lado, enormes vantagens: nunca, qualquer que seja o acidente, os pés do Cavaleiro ficam presos e estão sempre protegidos da humidade.” *

*Nota R.F. - O estribo usado pelos cavaleiros na corrida de toiros à portuguesa, conserva este material e esta forma, sendo por vezes protegidos e adornados por uma placa metálica e trabalhada.

[“Le Cavalier représenté dans cette gravure est assis sur une selle rase qui depuis quelques années a remplacé la selle de manége dont jadis l'usage étoit général, mais il conserve encore les étriers de bois. C'est, comme on le voit, une espèce de caisse dans laquelle le pied du Cavalier entre et d'où il sort avec la plus grande facilité. Si la forme de ces étriers n'est pas élegante, ce léger inconvénient est racheté par des avantages bien essentiels: jamais, quelqu'accident qui arrive, les pieds du Cavalier ne peuvent rester embarrassés dans ces étriers, et toujours ils y sont à couvert de l'humidité.”] [2]

 

 De burro

A alternativa ao cavalo era de povoação em povoação alugar um burro como escreve Costingan [3] no seu Sketches of Society and Manners in Portugal, quando em viagem do Porto para Lisboa os cavalos tiveram de parar por cansaço.

“Em todas as vilas e aldeias da estrada entre Porto e Santarém, onde embarcámos, existem sempre para alugar uns miseráveis burros que, contudo, nos transportam num ápice, para a povoação mais próxima, e chegando aí por mais duramente que lhes batamos eles recusam-se a dar mais um passo, mas existem sempre outros burros que podeis montar até à localidade seguinte…”

“ In all the towns and villages on the road between Porto and Santarem ,where we embarked, there are miserable little asses constantly to be hired, which however run with you like lightning to the next town, and were you beat them to death, would not to go a step farther, but there again you always find fresh ones ready to take you up;…” [4]


Naa vinheta de Giuseppe Piattoli para ilustrar o provérbio toscano Crede essere sopra un gran cavallo, ed è sopra un tristo asino”, (Julga estar montado num belo cavalo, mas está em cima de um miserável burro), que como o português “passar de cavalo a burro”, ignora a utilidade (e a dignidade) desse resistente e trabalhador animal.

 

fig. 9 - Giuseppe Piattoli active (1743-1823), Crede essere sopra un gran cavallo, ed è sopra un tristo asino. ca. 1800, Estampa n.º 40. Gravura e aguarela 28,9 x 20,8 cm.in "Proverbi toscani espressi in figura da Giuseppe Piattoli pittore fiorentino", I parte gravuras verticais.

 O provérbio está escrito numa legenda sob a imagem, tendo na parte inferior a seguinte quadra:

 O tu che sempre di te stesso altero

Ti credi andar de più famosi al paro,

Credendo cavalcar nobil Destriero,

Tu premi il dorso a sordido Somaro.

 [Ó tu que sempre te orgulhas ti próprio

achas que pareces o mais famoso,

Acreditando montar um nobre Corcel,

Vais montado num humilde Burro.]

 

De liteira

 A liteira de dois machos era o veículo mais utilizado para as deslocações no interior de Portugal.

 

fig. 10 - Henry L'Êveque, The litter. In Costume of Portugal, 1814.

 

 A liteira segundo Henri L’Évêque

 Henri L’Évêque no seu álbum, desenha e descreve, minuciosamente, a Liteira:

“Nas províncias de Portugal, que ficam para além de Coimbra, a norte do Mondego, o terreno é geralmente tão áspero e tão acidentado, os caminhos são tão íngremes e tão estreitos, e as curvas tão abruptas, que é muitas vezes muito difícil aí passar um carro. (…)

Viaja-se, por isso, a cavalo, ou melhor, sobre mulas, que têm patas muito mais seguras. Mas as senhoras, os enfermos, os idosos, que não suportam o movimento das montadas, são obrigados a recorrer à Liteira, cujo uso, tão comum em tempos na Europa, ainda se preserva nesta parte de Portugal.”

[“Dans les provinces de Portugal, qui sont au-delà de Coimbra, au nord du Mondego, le terrain est en général si âpre et si montueux, les chemins sont si roides et si étroits, et les tournans si brusques, qu'il est souvent bien difficile d'y faire passer une voiture. (…) On y voyage donc ordinairement à cheval, ou, pour mieux dire, sur des mulets, qui ont le pied beaucoup plus sûr. Mais les dames, les infirmes, les vieillards, qui ne peuvent supporter le mouvement de cette monture, sont obligés de recourir à la Litière, dont l'usage, si commun jadis en Europe, se conserve encore dans cette partie du Portugal.”]

 

E prossegue na sua descrição da gravura:

“É, como pode ser visto nesta gravura, uma caixa que se assemelha muito à de uma liteira levada por homens, exceto que as dimensões são maiores, e em vez de ser carregada por dois homens, ela é carregada por duas vigorosas mulas que a ela são atreladas.

Com uma porta de cada lado da caixa, o seu interior é acolchoado, forrado de tecido ou seda e fechado por cortinas e às vezes por espelhos. Duas pessoas sentam-se à vontade, posicionando-se não uma ao lado da outra, mas opostas uma à outra. Essa situação de tête-à-tête, o balanço muito suave da liteira, a própria lentidão de sua marcha, pois ela mal percorre de 20 a 25 milhas durante o dia (5 a 6 léguas no país), tudo parece convidar o viajante a gozar o longo percurso com os prazeres da conversa e a efusão da confiança: é o que tem levado a dizer que a liteira é, por excelência, a viatura dos amigos e dos amantes, que sempre têm muito a dizer um ao outro e que nunca se cansam do prazer de se ver e encontrar”.

[“C'est, comme on le voit dans cette gravure, une caisse qui ressemble beaucoup à celle d'une chaise à porteurs, excepté que les dimensions en sont plus grandes, et qu'au lieu d'être portée par deux hommes, elle l'est par deux mulets vigoureux qu'on y attèle. Une portière s'ouvre de chaque côté de la caisse, dont l'intérieur est rembourré, doublé en drap ou en soie, et fermé par des rideaux, et quelquefois par des glaces. Deux personnes y sont assises à l'aise, en se plaçant, non pas à côté, mais vis-à-vis l'une de l'autre. Cette situation en tête-à-tête, le balancement très-doux de la machine, la lenteur même de sa marche, car elle ne fait guères, dans la journée, plus de 20 à 25 milles (5 à 6 lieues du pays), tout semble inviter les voyageurs à charmer la longueur de la route par les plaisirs de la conversation et les épanchemens de la confiance : c'est ce qui a fait dire, que la litière étoit, par excellence, la voiture des amis et des amans, qui ont toujours tant de choses à se dire, et qui ne sont jamais rassasiés du plaisir de se voir.”]

E termina salientando o ruído das campainhas e dos guizos que assinalam a marcha da liteira:

“Os arreios das mulas estão carregados com um grande número de sinos e guisos, que o animal sacode e faz soar enquanto caminha. A continuidade desse ruído agudo não pára de ofender o ouvido; mas ele torna-se mais suave pela habituação, e o seu inconveniente é mais do que compensado pela vantagem que dele se obtém. Em primeiro lugar, avisa os que negligentes ou afastados, que as mulas e a liteira estão paradas; e a sua sonoridade anuncia ao longe a aproximação da liteira a todos os que se aproximam, sejam cavaleiros, carroças, ou bestas de carga: o que, nos estreitos caminhos, nos desfiladeiros ou nas encostas das montanhas, dá-lhes tempo para se arrumarem nas bermas da estrada, em espaços concebidos para o efeito, de forma a permitir a passagem da liteira, que só com grande dificuldade pode recuar, e cuja envergadura é, por vezes, suficiente para ocupar toda a largura do caminho, que em alguns sítios é demasiado estreito.”

[“La bride des mulets est chargée d'un grand nombre de clochettes et de grelots, que l'animal agite et fait sonner en marchant. La continuité de ce bruit aigu ne laisse pas d'offenser l'oreille; mais l'accoutumance l'adoucit, et l'incommodité qu'il donne est plus que compensée par l'avantage qu'on en retire. D'abord, son interruption avertit le conducteur négligent ou écarté, que la marche des mulets est arrêtée ; et son éclat annonce au loin l'approche de la litière à tous les objets qui viennent au-devant, tels que cavaliers, charrettes, bêtes de somme: ce qui, dans les défilés des chemins, dans les gorges ou sur les penchans des montagnes, donne à ceux-ci le temps de se ranger sur les côtés de la route, dans des espaces ménagés à dessein, afin de laisser passer la litière, qui ne sauroit reculer que très-difficilement, et dont la voie suffit quelquefois pour occuper toute la largeur du chemin, tant il est étroit dans quelques endroits.”] [5]

 

A liteira segundo William Granville Eliot

William Granville Eliot (1775-1855) um oficial inglês que participou na Guerra Peninsular no seu Treatise of Defence of Portugal, publicado em 1810, também refere a liteira de mulas.

“Nas zonas mais montanhosas do país, é utilizado um veículo semelhante a uma liteira, transportado da mesma maneira por duas mulas; assim, poderá ser transportado do Porto para Lisboa, numa distância de 52 léguas, em sete dias, sendo ao ritmo de cerca de trinta milhas por dia. Será conveniente começar a negociar para toda a jornada, visto que nenhuma alteração será feita na estrada; e também munir-se de um bom manto, um cobertor e alguns alimentos.”

[“Over the more mountainous parts of the country, a vehicle resembling a sedan chair, and carried in the same manner by two mules, is used; by this means you may be conveyed from Oporto to Lisbon, a distance of 52 leagues, in seven days, being at the rate of about thirty miles a day. It will be expedient at starting to bargain for the whole journey, as no relays are to be met with on the road; also to be provided with a good cloak, a blanket, and some eatables.”] [6]

 

fig. 11 - Liteira 9,5 x 21,6 cm. Museu Nacional dos Coches.

 

A liteira segundo William Kinsey

E William Morgan Kinsey (1788-1851) [7], no seu Portugal Illustrated Letters, publicado em 1828, não só refere a liteira como apresenta duas imagens de liteiras em viagem.[8]

 “Os viajantes, que não têm condições de suportar os solavancos em estradas ruins, sob um sol a pino, e que não gostam dos passos desiguais de uma mula, que geralmente produzem febris sensações, costumam alugar uma Liteira, que se assemelha a uma cabine com cadeira dupla, a qual é suspensa por fortes varões entre duas mulas, a primeira das quais é sempre conduzida pelo guia nas partes difíceis da estrada. O preço de uma Liteira varia de doze a quinze xelins por dia, sem contar as gorjetas e a comida do arrieiro.”

[Travellers, who are unequal to support the jolting on bad roads, under an almost vertical sun, and who dislike the uneven paces of a mule, which generally produce feverish sensations, usually hire a Liteira, which resembles a double Bath-chair, and is suspended by strong poles between two mules, the foremost of which is always led by the guide in difficult parts of the road. The price of a Liteira varies from twelve to fifteen shillings a day, exclusive of gratuities and the food of the muleteer.] [9]

 Uma das imagens mostra uma liteira atravessando a Serra da Labruja em Ponte de Lima e Kinsey anota o seguinte comentário:

 “A serra de la Bruga, que tivemos de atravessar a caminho de Ponte de Lima, foi considerada, na recepção do governador, como infestada de bandidos, pelo que aceitamos a sua oferta de uma pequena escolta; mas não teríamos corrido nenhum grande perigo, já que esses homens nos acompanhavam com as suas armas.”

 [The Serra de la Bruga, which we had to cross in our way to Ponte de Lima, was reported at the governor's party to be infested with banditti, and therefore we accepted his offer of a small escort; but no great extent of danger could have been apprehended, as the men attended us with their side-arms only.] [10]

 

fig. 12 - Imagem do Portugal Illustrated Letters London, 1828 do rev. William Morgan Kinsey (1788-1851). (pág.277).


Na segunda vinheta, Kinsey mostra uma liteira com dois passageiros sentados face a face, e acompanhados por viajantes a cavalo e uma mula transportando bagagens. Descem a encosta por um perigoso caminho.


fig. 13 - rev. William Morgan Kinsey (1788-1851). Travellers in Portugal Letter IX 1837 in Portugal Illustrated Letters London, 1829. (pág. 241).

 

A liteira segundo James Murphy

Nos finais do século XVIII, o arquitecto irlandês James Cavanah Murphy (1760-1814) foi incumbido de realizar o levantamento do Mosteiro da Batalha.

Para isso deslocou-se de barco de Inglaterra até Portugal onde desembarcou na cidade do Porto em Dezembro de 1788.

No início de 1789 empreende uma viagem por terra para sul até à Batalha (onde se deteve por cerca de 3 meses), tendo então seguido por outros itinerários no sul do país.

 Dessa sua deslocação por Portugal publicou um livro Travels in Portugal in the years of 1789 and 1790 [11].

Mais adiante referiremos o percurso de Murphy do Porto até Coimbra – no sentido inverso de Manoel Fernandes Thomaz – mas que pode dar uma ideia, apesar de alguns melhoramentos nas estradas devidos às manobras militares da Guerra Peninsular, da viagem de Manoel Fernandes Thomaz quando em 1817 se desloca para o Porto, para tomar posse do lugar de desembargador do Tribunal da Relação.

Da sua estadia em Portugal, James Murphy publica ainda em 1797 A General View of the State of Portugal [12], um relato, não tão crítico, mas mais objectivo e menos adjectivado, onde insere, na página 146, uma curiosa gravura Viajando de Liteira representando uma liteira que transporta uma jovem, atenta ao muleteiro que cavalgando de costas para o caminho vai cantando e tocando uma guitarra. A estampa é referida no texto como People of fashion, and delicate persons, usually travel in litters, as represented in Plate IX.

 A estampa IX numa cópia da Biblioteca Nacional de Portugal.

 

fig. 14 - James Murphy, Travelling in a Litter. Plate IX London, Publishid Jan.1.st by Cadell & Davies – Strand. água-tinta 17,1 x 21,7 cm. London 1797. B.N.P. 

Nota à gravura - Cadell & Davies era uma editora constituída entre 1793 e 1836 por Thomas Cadell Júnior (1773-1836), filho do editor Thomas Cadell (1742–1802) e por William Davies (1764 -1820).

  

A liteira segundo Camilo Castelo Branco

Ainda sobre a liteira de machos, Camilo Castelo Branco (1825-1890), em Vinte Horas de Liteira de 1864, recorda uma viagem de liteira, entre Vila Real e o Porto, lembrando o tilintar das campainhas: “a liteira dos dous machos pu­jantes e das ciocoenta campainhas estridulas, (…) a liteira das minhas saudades, porque se embalaram n'ella as minhas primeiras pe­regrinações; porque, dos postigos de uma, vi eu, fora das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas; porque o tilintar das suas cam­painhas me alegrava o animo, quando a toada fes­tiva me interrompia as cogitações da tarde por es­sas estradas do Minho e Traz-os-montes.”

 

fig. 15 - Domingos Sequeira (1768 - 1837) - Liteira e muleteiro Desenho 25 x 21 cm Museu Nacional dos Coches.

 Escrevendo que a “voragem do progresso” a fará desaparecer face à ferrovia, “o hórrido fremir do wagon, que bate as crepitantes azas de infernal hippogrypho.” e à melhoria das estradas que “o camartello e o rodo escalaram o agro e penhascoso das serras,” obrigaram que “a liteira, acossada pelo Char-à-bancs,” apenas fosse utilizada “nas veredas pedregosas, e acoutou-se á sombra do solar alcantilado e inaccessivel ao rodar da sege. Ao passo que o vapor talava os plainos, gal­gava ella, espavorida, os desfiladeiros para escon­der-se.” [13]

O percurso de liteira de Camilo Castelo Branco

Camilo Castelo Branco usa essa viagem entre Ovelhinha “uma póvoa escondida nos fraguedos do Marão”, (uma aldeia situada junto a Amarante), e a Rua da Boavista no Porto (capítulo XXIV), como pretexto para o diálogo com o amigo.

E refere, ao longo do romance, as sucessivas paragens “Pernoitámos em Amarante, numa estalagem, onde eu, anos antes, tinha visto três belas criaturas” (...), e no capítulo seguinte “apeámos na estalagem de Penafiel” e refere ainda a passagem por Baltar e São Roque da Lameira.

Na carta de Portugal de Emiliano Augusto de Bettencourt (1825-1886), precisamente de 1864, assinalámos a povoação de Ovelha junto a Amarante.

 

fig. 16 - Emiliano Augusto de Bettencourt (1825-1886), Carta de Portugal com a divisão administrativa por districtos e concelhos / Coordenada sobre os trabalhos mais importantes existentes na Repartição d'Obras Publicas, por E. A. de Bettencourt; grav. por J. F. M. Palha, ligth de C. Maigné. - Escala 1:700000, 0,00001 = 7. - [S.l.] : Lith. de C. Maigne, [ca 1864]. - 1 mapa : p&b ; 86,00x59,20 cm, em folha de 93,00x70,00 cm. BNP. 

 

fig. 17 – Pormenor da carta de Portugal de 1864 com a povoação de Ovelha.

 

De sege

 A viagem de Coimbra ao Porto ainda podia, embora dificilmente, ser efectuada de sege, um veículo do século XVIII de meia caixa com dois lugares e duas ou quatro rodas, puxado por uma parelha de cavalos ou mulas, que embora ligeira e fácil de manobrar, era sobretudo usada nas deslocações urbanas. 

 

fig. 18 - A.P.D.G. - “Sketches of Portuguese Life, manners, costume and caracther”, London printed for Geo. B. Whittaker, Ave Maria Lane, 1826.

 

De facto, dado o estado das estradas no início do século XIX, a sege só era utilizada em viagem em condições muito especiais, como ilustra William Kinsey.

 

fig. 19 - William Morgan Kinsey (1788-1851), Sege.Mules, and driver going up a step ascent.  Letter III 1827 in Portugal Illustrated Letters London, 1829. (pág.90).




[1] Ver o 1º episódio.

[2] Henri L'Évêque (1814) Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814. Com 50 gravuras e águas-tinta representando vários costumes portugueses e 53 páginas de texto em inglês e francês explicativos de cada uma dessas imagens.

[3] James “Diogo” Ferrier (1734-18??), militar irlandês que esteve em Portugal entre 1762 e 1780.

[4] Arthur William Costigan, Letter XXIV, 1779 in Sketches of Society and Manners in Portugal in a Serie of Letters from Arthur William Costigan, Esq. Late a Captain of the Irish Brigade in the Service of Spain, to his Brother in London. Vol. II. Printed for T. Vernor, Birchin-Lane Cornhill. London 1787. (pág. 17). 

[5] Henri L'Évêque (1814) Costume of Portugal, Colnaghi & Co. Londres 1814.

[6] William Granville Eliot (1775-1855), A Treatise on The Defence of Portugal with a Military Map of The Country To which is added A Sketch of the Manners and Costumes of the Inhabitants, and Principal Events of the Capigns under Lord Wellington in 1808 and 1809. Printed for T. Egerton, Military Library. Withehall London 1810. (pág.128).

[7] O reverendo William Morgan Kinsey (1788-1851), esteve em Portugal em 1827. A partir do seu Diário, das cartas que escreveu ao poeta e dramaturgo Thomas Haynes Bayly (1797-1839) e ainda de outras fontes, escreveu um livro que publicou em 1828 com o título Portugal Illustrated, com gravuras de G. Cooke e J. Skelton. A segunda edição que utilizamos é de 1829.

[8] William Morgan Kinsey (1788-1851), Portugal Illustrated Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various engravings of costumes, landscape scenery, &c. Treuttel, Würtz, and Richter, Soho Square London 1828.

[9] William Morgan Kinsey (1788-1851), Portugal Illustrated Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various engravings of costumes, landscape scenery, &c. Treuttel, Würtz, and Richter, Soho Square London 1828. (pág.218).

[10] rev. William Morgan Kinsey (1788-1851), Portugal Illustrated Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various engravings of costumes, landscape scenery, &c. Treuttel, Würtz, and Richter, Soho Square London 1828. (pág.271).

[11] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795.

[12] James Cavanah Murphy (1760–1814), A General View of the State of Portugal Containing a Topographical description there of in which are inclued, na account of the physical and moral together with observations on the animal, vegetable and the whole compiled from the best portuguese writers, and illustrades with plates. . Printed fot T. Cadell Jun. and W. Davies in the Strand London 1798.

[13] Camilo Castelo Branco – Introdução a Vinte Horas de Liteira. (1864). 3ª Edição Parceria António Maria Pereira Lisboa 1907. (pág. 5 a 10).


4 - O percurso entre Porto e Coimbra

 

Como já afirmámos nos finais do século XVIII, o arquitecto irlandês James Cavanah Murphy (1760-1814) foi incumbido de realizar o levantamento do Mosteiro da Batalha e por isso deslocou-se a Portugal.

Empreende então uma viagem do Porto até à Batalha (onde se deteve por cerca de 3 meses), tendo então seguido por outros itinerários no sul do país.

Dessa sua deslocação por Portugal publicou um livro Travels in Portugal in the years of 1789 and 1790 [1].

Se bem que Fernandes Thomaz se tenha deslocado de Coimbra para o Porto interessa-nos desse relato de Murphy, o percurso inverso (do Porto até Coimbra), já que apesar de algumas poucas alterações ditadas sobretudo pelas deslocações militares na Guerra Peninsular, manteve-se no geral o tipo de transporte, o estado da estrada e os locais de prenoita dos viajantes e a mudança dos animais

 Murphy narra, esse percurso com referências diárias, desde Sexta-Feira, 23 de Janeiro de 1789, até à sua chegada a Coimbra, 4 dias depois.

 Por isso acompanhemos essa viagem de Murphy.

 O Mapa

Na folha n.º 1 do mapa da Península Ibérica de 1790 desenhado por Tomás López de Vargas Machuca (1730-1802) e Michael Votésky (?-?), assinalamos os locais que são referidos no relato de Murphy. (Porto, Carvalhos, Arrifana, Albergaria, Sardão, Avelãs (?), Mealhada, e Coimbra).

 

fig. 20 - Tomás López de Vargas Machuca (1730-1802) e Michael Votésky (cartógrafos), Franz Anton Schraembl (1751-1803) (editor) Folha n.º 1 de Neueste generalkarte von Portugal und Spanien1790 nach den astronomischen Beobachtungen und Karten des Herrn Thomas Lopez / verfasst von Herrn Michael Voteskymapa em 6 seções 72 x 53 cm cada folha. Institut Cartogràfic i Geològic de Catalunya.

 

 

fig. 21 - Pormenor do mapa com o percurso entre Porto e Coimbra com as localidades assinaladas e numeradas, referenciadas por James Murphy.

 

 Partida do Porto (1)

 Escreve Murphy em 23 de Janeiro:

“Assim que atravessamos o Douro, juntaram-se-nos três outras carruagens que regressavam a Lisboa; duas delas estavam vazias, a outra tinha sido contratada por um senhor da província do Minho.

Este senhor tem sido o meu topógrafo na estrada; e temo que os nomes de alguns lugares, não encontrados nos mapas portugueses, façam parte da corrupta ortografia local, onde se fala um dialecto entre o português e o espanhol.

Fomos também acompanhados, no primeiro dia de viagem, por quatro galegos, contratados pelos arrieiros para os ajudar a resgatar os seus veículos e mulas dos obstáculos que se interpunham.”

[“As soon as we crossed the Douro, we were joined by three other carriages returning to Lisbon; two of them were empty, the other was engaged by a gentleman from the province of Minho.

This gentleman has been my topographer on the road; and I fear that the names of some places, not to be found in the Portuguefe maps, partake of the corrupt orthography of his province, where in they speak a dialed: between the Portuguese and the Spanish languages.

We were also accompanied, in the first day's journey, by four Galician labourers, employed by the muleteers for the purpose of assisting them in rescuing their vehicles and mules from the obstrudions that lay in the way.” ]


E Murphy prossegue salientando:

É extraordinário que tão perto da segunda cidade do reino não haja um caminho a que possámos chamar de estrada; é verdade que alguns esforços foram feitos para abrir uma, mas foi tão mal planeada que na primeira enchente provocada pelas chuvas a maior parte dela foi varrida.

Não teríamos podido prosseguir sem a ajuda desses muleteiros, visto que as mulas caíam a cada momento, ou ficavam atoladas na lama, onde teriam permanecido, se não fossem os esforços de toda a companhia.”

[“It is extraordinary, that so near the second city in the kingdom, there is not a perch of what we should call a road; some efforts, it is true, have been made to form one, but fo ill contrived, that the first torrent hasnswept the greater part of it away. We should not have been able to proceed without the aid of these labourers, as the mules were every moment tumbling, or embarrassed in the mud, where they must have remained but for the united efforts of the company.”]  [2]

 

Os Carvalhos [2]

 Relata Murphy a sua chegada aos Carvalhos onde se instalará na Estalagem.

“Às quatro horas da tarde chegamos a Dos Carvalhos num estado miserável; mulas e almocreves, galegos e passageiros, todos com os trajes, salpicados da cabeça aos pés.

A Estalagem dos Carvalhos ou Caravansary of the Oaks, dista cerca de uma légua do Porto, e de onde partimos às 9 horas da manhã, concluiu esta jornada.”

[“At four o'clock in the afternoon we reached Dos Carvalhos in a miserable plight; mules and muleteers, Galicians and passengers, all in the same livery, bespattered from head to foot, Estalagem dos Carvalhos or the, distant about one league from Oporto, which we left at nine o'clock in the morning, closed this day's flage.”] [3]

A Estalagem

 Nos Carvalhos, onde se acolhe, Murphy desenha a Estalagem com um majestoso carvalho e um carro de bois.

 

fig. 22 - Estalagem dos Carvalhos in Murphy A View of the Caravansary of the Oaks. Plate II pág.20.

A Estalagem apresenta uma arquitectura rural e popular. O edifício tem um rez-do-chão que se prolonga em alpendre o qual se abre para um pátio. Num corpo de uma das extremidades do edifício colocavam-se os estábulos. No corpo principal a porta da entrada e a sala das refeições. O piso superior era reservado para os quartos.

 Sobre esta estalagem também escreve William Kinsey.

“(…) Chegámos a Vila Nova, onde a estalagem não sendo muito convidativa, dirigimo-nos então ao adro da igreja, e espalhámos os fragmentos heterogêneos de nossa cesta de provisões nos degraus de uma cruz de pedra, como fizemos posteriormente, em várias ocasiões, onde o ar livre sempre preferimos ao ambiente sujo e confinado das barracas de rua, que por aqui se distinguem universalmente por ostentarem uma inscrição na placa da "Companhia Geral do Alto Douro".

[“(…) we reached Villa Nova, where the estalagem not being very inviting, we betook ourselves to the churchyard, and spread the motley fragments of our provision basket on the steps of a stone cross, as subsequently, in numerous instances, where the open air challenged our preference to the filth and confined atmosphere of the way-side winehuts, which in these parts are universally distinguished by bearing an inscription on the sign of " Companhia Geral do Alto Douro."] [4]

E referindo-se às estalagens, para além de uma gravura de um edifício não identificado, escreve com uma britânica ironia:

“O edifício de uma Estalagem tem na frente um espaço aberto, ao lado do qual existe uma porta que conduz ao curral escuro para as mulas, - pois não merece o nome de estábulo, - e do outro lado uma espécie de masmorra, lúgubre e escura, na qual são colocados, lado a lado, numerosos sacos grosseiros recheados de palha, ou folhas de milho, para os arrieiros e peões. Uma escada de pedra, invariavelmente coberta de lixo, e mais frequentemente cercada por mendigos robustos e importunos, a cujas mãos estendidas e às súplicas fervorosas é quase impossível de resistir, leva a um salão, ou refeitório, comum a todos os que chegam, tendo em cada lado portas para os diversos armários, pois não podem ser chamados de quartos de dormir, com os quais, no entanto, os viajantes comuns têm de contentar-se em ocupar, ou melhor, compartilhar com os nativos percevejos.”

[“The arrangement of an Estalagem is generally to have a open space in front, on one side of which is a door leading into the dark receptacle for the mules, — for it does not deserve the name of a stable, — and on the other is a sort of dungeon, dreary and dark, in which are placed, side by side, numerous coarse bags stuffed with straw, or leaves of Indian corn, for muleteers and foot-passengers. A stone staircase, invariably covered with filth, and most frequently beset by sturdy and importunate beggars, whose clasped hands and earnest entreaties it is almost impossible to resist, leads up to a landing-place, or eating-room, common to all comers, on either side of which

are doors to the different cupboards, for they cannot be called bed-rooms, which nevertheless ordinary travellers are contente to occupy, or rather share with the native persevejos.”] [5]

fig. 23William Morgan Kinsey (1788-1851), Estalagem or Portuguese Inn. In Portugal Illustrated Letters. (pág. 214).

 

Na verdade, já antes William Granville Eliot no seu Treatise of Defence of Portugal, publicado em 1810, havia criticado as estalagens portuguesas.

“As Estalagens, ou pousadas, mesmo em algumas das melhores cidades, são miseravelmente sujas e deploráveis, não oferecendo um melhor alojamento; uma cervejaria na Inglaterra é um luxo em comparação com a melhor delas. Um oficial raramente estará sujeito a esse inconveniente; o seu uniforme é um passaporte suficiente; e, a pedido do magistrado-chefe * do local, ele receberá uma autorização.

*Nas cidades, o magistrado-chefe tem o título de Corregedor, tendo jurisdição sobre determinado distrito. Nas menores cidades e vilas as autorizações são emitidas por um Juiz-de-Fora, Juiz do Povo ou Capitão Mor. Este último é uma espécie de magistrado militar, tendo o comando do Levée en Masse, normalmente com a patente de Tenente-Coronel.”

[“The Estalagens, or inns, even in some of the better towns, are miserably dirty and wretched, affording no better accommodation; a pot alehouse in England is a luxury compared to the best of them. An officer will seldom be subject to this inconvenience; his uniform is a suficiente passport; and, on application to the chief magistrate* of the place, he will be provided with a billet.

* In the cities the chief magistrate is entitled Corregidor, having the jurisdiction of a certain district. In the smaller towns and villages billets are procured from the Juiz-de-Fora, Juiz de Povo, or Capitao Mor. The latter is a kind of military magistrate, having the command of the Levée en Masse, most commonly with the rank of Lieutenant Colonel.”] [6]

 

E prossegue William Eliot, referindo-se à restauração.

“Há uma abundância de Casas de Café em cada cidade; estas, exceto alguns em Lisboa e no Porto, são literalmente casas de venda de café, limonada, bebidas espirituosas e nada mais.

 [“There are abundance of Casas de Café in every town; these, except some few in Lisbon and Oporto, are literally houses for selling coffee, lemonade, spirits, and nothing more.”]

E refere ainda as Casas de Pasto:

“As Casas de Pasto e Casas de Comer ou restaurantes, são idênticas às Estalagens no que diz respeito à sujeira e falta de higiene; tudo é servido com uma abundância de azeite e alho. O único prato saboroso ao paladar da maioria dos ingleses é o Caldo de Galinha, composto por uma galinha cozida com um pouco de toucinho gordo, uma cebola e um pouco de arroz, servidos juntos no caldo; nele é introduzido um pouco de óleo rançoso e uma salsicha de alho forte, quando não é proibido.”

[“The Casas de Pasto and Casas de Comer or eating-houses, are of the same description with respect to nastiness and filth, as the Estalagens; every thing is served up with a profusion of oil and garlic. The only palatable dish to the taste of most Englishmen is a Caldo de Galinha, composed of a fowl boiled with a bit of fat bacon, an onion and some rice, served up together in the broth; into this a little rancid oil and a strong garlic sausage is introduced, if not forbidden.] [7]



[1] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795.

[2] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795. (pág. 18).

[3] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795. (pág. 18 e 19).

[4] rev. William Morgan Kinsey (1788-1851), Portugal Illustrated Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various engravings of costumes, landscape scenery, &c. Treuttel, Würtz, and Richter, Soho Square London 1828. (pág. 209 e 210).

[5] rev. William Morgan Kinsey (1788-1851), Portugal Illustrated Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various engravings of costumes, landscape scenery, &c. Treuttel, Würtz, and Richter, Soho Square London 1828. (pág. 216 e 217).

[6] William Granville Eliot (1775-1855), A Treatise on The Defence of Portugal with a Military Map of The Country To which is added A Sketch of the Manners and Costumes of the Inhabitants, and Principal Events of the Capigns under Lord Wellington in 1808 and 1809. Printed for T. Egerton, Military Library. Withehall London 1810. (pág.129).

[7] William Granville Eliot (1775-1855), A Treatise on The Defence of Portugal with a Military Map of The Country To which is added A Sketch of the Manners and Costumes of the Inhabitants, and Principal Events of the Capigns under Lord Wellington in 1808 and 1809. Printed for T. Egerton, Military Library. Withehall London 1810. (pág.130).



5 - Um parêntesis sobre o Carvalho

A presença do Carvalho não é apenas uma referência ao nome do lugar [1], e às origens irlandesas do arquitecto [2], mas permite a Murphy estruturar o espaço da estampa enquadrando o edifício da estalagem.

 A presença do carvalho junto da estalagem reforça o sentido de acolhimento e abrigo, já que protege das tempestades no Inverno e dos excessos do calor no Verão.

Por isso o Abade de Jazente começa assim um seu soneto:

“As sestas longas do fervente Estío

Passo á sômbra do rústico Carvalho,” [3]


O Carvalho entre os gregos

Neste final do século XVIII há um retorno à Antiguidade Clássica.

O carvalho era, entre os gregos, uma árvore conotada como símbolo de força, nobreza e resistência e representava a força invencível e símbolo de longevidade.

Na Grécia antiga dizia-se que os deuses habitavam na Natureza e na região de Dodona existiu um carvalho que era o templo de Zeus.

O deus revelava a sua vontade através do ruído produzido pelo vento soprendo a folhagem ecompetia aos oráculos, quando mulheres apelidadas de peleiades, interpretar esse mumúrio e os desígnios da divindade.


Que Fernando Pessoa descreve no poema:

“Vai alto pela folhagem

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

 

Mas, sim, é como se o som

Do vento no arvoredo

Tivesse um intuito, ou bom

Ou mau, mas feito em segrêdo…” [*]



[*] Fernando Pessoa (1888-1935), “Vai alto pela folhagem”” 5 de Setembro de 1933, de Cancioneiro in Fernando Pessoa Obra Poética, Companhia Aguilar Editôra, Rio de Janeiro 1965. (pág. 169).

Homero (928? - 898? A.C.) na Odisseia refere que Ulisses fora a Dodona para saber como regressar a Ítaca.

“Dele [Ulisses], disse-me que fora a Dodona, para do divino

E magestoso carvalho saber a vontade de Zeus,

como poderia voltar para a sua cidade de Ítaca,” [4]

 

Platão (428/27-348/47 a.C.) no Fedro coloca Sócrates referindo o carvalho do templo de Zeus em Dordona.

“Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, Em Dodona *, foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante, conquanto lhes parecesse verídico!” [5]

*Cidade grega, notável pelo templo em honra de Zeus.

Na tradução francesa:

[“SOCRATE

Mon ami, les prêtres du temple de Zeus à Dodone ont affirmé que c'est d'un chêne que sortirent les premières divinations. Les gens de ce temps-là, qui n'étaient pas savants comme vous, jeunes gens, écoutaient fort bien dans leur simplicité un chêne ou une pierre, si le chêne ou la pierre disaient la vérité.” ] [6]

E Apolonius de Rodes (295-215 a.C) na Argonáutica, diz que o mastro do navio dos Argonautas era construído a partir de um carvalho da floresta sagrada da Dordona

“O porto Pagaseo retumba horrendo,

E Argo mesma soando urge a partida,

Pois nella se embebeu trave divina

Do roble Dodoneo, que a sabia Palas

Da quilha em meio colocou.” [7]

 

O Carvalho na poesia da transição dos séculos XVIII e XIX.

Neste final do século XVIII há um retorno à Antiguidade Clássica e os poetas associam o carvalho ao templo de Dodona.

O poeta francês Pierre Fulcrand de Rosset (1708-1788), no seu poema L’Agriculture, canta Dodona e o seu orgulhoso Carvalho.

[“La Grèce, qu´habitants des campagnes,

Les Dieux peuplaiente les bois, les jardins, les montagens;

Qu’on y voyait Diane, & Priape, & Silvain,

Que chaque arbre enfermait une Nymphe en son sein.

Elle allait, de Dodône admirant le miracle,

De sa forêt profete interroger l’oracle.

Sur un chêne orgueilleux, des Peuple adoré,

Les Druydes sanglans cueillaient le gui sacre;

Les Autels explosaient au culte du vulgaire,

De la faveur de Cieux ce gage imaginaire.”] [8]

O poema foi traduzido para português por Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805).

“A Grécia presumiu, sonhou que os deuses

Povoavam jardins, montanhas, bosques;

Que Pan, Delia, Priápo ali se viam

E morava uma Nympha em cada tronco:

De Dodona, os milagres admirandos,

Consultavam prophetico arvoredo:

Sobre carvalho, aos povos adorável,

Iam colher o agárico sagrado

Feros ministros, druydas cruentos;

Ante o culto plebeu se expunha em aras

Penhor ílcticio do celeste amparo.” [9]

Um outro poeta René Richard Louis Castel (1758-1832), num poema Les Plantes, também traduzido por Bocage, refere o carvalho.

“Crescendo, dobra o lustre a Natureza;

Vigor celeste a Mocidade anima.

Tudo fermenta, existe. Olha o carvalho:

Lá formosêa o chaõ co'as tardas sombras.” [10]

 

[“La nature, en croissant, redouble de largesse.

Une vigueur céleste anime sa jeunesse.

Tout fermente, tout vit. Les chênes verdoyans

De leur ombre tardive embellissent tes champs.”] [11]


E finalmente o conhecido abade e poeta Jacques Delille (1738-1813), autor do incontornável poema Les Jardins [12], num outro poema intitulado L’Imagination, de 1806, faz referência ao Carvalho.

[“L'agriculteur pour lui voit des dangers sans nombre;

Mais il prévoit ses fruits, il espère son ombre.

Non loin de lui s'élève un chêne fastueux

Qui défia cent ans les vents impétueux;

Son sommet revêtu d'un plus rare feuillage,

Et sa mousse et ses noeuds décèlent son grand âge:

Mais le culte et l'amour du peuple des hameaux,

Consacrent sa vieillesse et ses derniers rameaux.

Ainsi du chêne antique ou du naissant arbuste,

L'un paraît plus touchant, et l'autre plus auguste;

L'un a pour lui l'espoir, l'autre le souvenir;

L'un plaît dans le passé, l'autre dans l'avenir.” ][13]

 

Numa minha aproximada tradução:

 

“O agricultor vê sempre perigos numerosos;

Mas prevê os seus frutos, e espera pela sua sombra.

Não muito longe, ergue-se um carvalho sunptuoso

Que desafiou cem anos, os ventos impetuosos;

A sua copa coberta de uma mais rara folhagem,

A sua longa idade, pela seiva e pelos nós, é a imagem:

Mas a adoração e o amor dos que o conhecem,

Consagra a sua velhice e a sua última ramagem.

Assim, o carvalho antigo ou o nascente arbusto,

Um mais comovente e o outro mais augusto;

Um tem em si a esperança, o outro tem a saudade;

Um agrada pelo futuro, o outro pelo peso da idade.”

 



[1] Note-se na toponímia local a presença de Carvalhos, Carvalhosa, Carvalhido, Carvalhal, etc.

[2] Na Irlanda a grande presença de carvalhos origina na tradição celta a atribuição ao carvalho de propriedades medicinais e tornando o carvalho uma árvore sagrada.

[3] Paulino António Cabral de Vasconcellos (1719-1789), Abbade de Jazente (1782-1784). Soneto in Poesias de Paulino Cabral de Vasconcellos. Na Officina de Antonio Alvarez Ribeiro. Anno de 1786. Porto. (pág.132).

[4] Homero, Odisseia (Canto XIX, 296-298)

[5] Platão, Fedro ou da Beleza. Tradução e Notas de Pinharanda Gomes, sexta edição, Guimarães Editores, Lisboa 2000.(pág. 122).

[6] Phèdre in Oeuvres de Platon, Ion, Lysis, Protagoras, Phèdre, Le banquet. Traduction nouvelle, avec des notices et des notes par E. Chambry. Librairie Garnier Frères Rue des Saint-Pères 6. Paris 1919. (pag.307). Émile Chambry (1864-1951).

[7] Os Argonautas Poema de Apollonio Rhodio, traduzido por José Maria de Costa e Silva Imprensa Nacional Lisboa 1852. (pág. 18).

[8] Pierre Fulcrand de Rosset (1708-1788), L’Agriculture. Imprimerie Royale. Paris. M DCC LXIV. (pág. 84).

[9] Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), A Agricultura. Poema Mr. De Rosset. Traduzido em Verso portuguez. In Bocage, Obras Completas vol. VI. Imprensa Portugueza. Porto 1875. (Canto Terceiro Das Árvores. pág 269).

[10] As Plantas Poema de Ricardo de Castel.  professor de litteratura no prytaneo-francez; traduzidas da II. edição, verso a verso, debaixo dos auspicios e ordem de S. Alteza Real O Principe Regente Nosso Senhor, por Manoel Maria de Barbosa Du Bocage. Na Typographia Chalcographica, Typoplastica, e Litteraria do Arco do cego. Liaboa M. D.C.C.C. I. (Canto I, pág. 33).

[11] René Richard Louis Castel (1758-1832), Les Plantes, Poème, Par René-Richard Castel. Seconde Édition, revue. Ornée de cinq figures en taille – douce. De L'Imprimerie de Didot Jeune, Chez Deterville, Libraire, rue du Battoir, n.º 16, A Paris 1799. (Chant I, pág. 20).

[12] Les Jardins oú l’Art d’Embellir les Paysages (1780), poème par M. L’Abbé de Lille. A Paris De l’Imprimerie de France . Amer. Didot L’Ainé. M DCC LXXXII. O poema foi traduzido para inglês por Maria Henrietta Montolieu (1751-1832), The Gardens. Poem translated from the french of the Abée Delille by Mrs. Montolieu. The second Edition. Printed by T. Bensley, Bolt Court; and sold by Robson, New Bond Street; White Flert Street; Evans, Pall Mall; and Kerby, Stafford Street. London 1805. Ilustrado por quatro gravuras de Vieira Portuense (1765-1805) e Francesco Bartolozzi (1727-1815), com que Vieira então trabalhou.

[13] Jacques Delille (1738-1813), L’Imagination. Poëme (1806). in Oeuvres Complètes de Jacques Delille. Avec les Notes et Variantes, les Imitations de Poetes les plus estimés, par V. Arnault de L’Académie Française. Tome quatrième. Chez Édouard Leroi, Libraire. À Bruxelles Chez Langlet et Compagnie, Libraires. Paris 1835. (Chant troisième, pág. 80).


O Carvalho na pintura clássica e romântica

 

The Great Oak de Nicolaes Berghen

O pintor Nicolaes Berghem, (1620-1683), citado, entre outros pintores, por Jacques Delille no seu poema os Jardins, pintou ainda no século XVII, um quadro intitulado O Carvalho grande.


fig. 24 - Nicolaes Berghem, (1620-1683), The Great Oak (o grande carvalho) 1652, óleo s/tela 86,4 x 106,7 cm. Los Angeles County Museum of Art.

 

Nessa tela mostra um tratamento da paisagem com uma quente luminosidade e um céu brilhante, onde alguns pastores com seu gado descansam na sombra fresca de um velho e magestoso Carvalho.

A árvore que domina todo o centro da composição, levou certamente Delille a escrever no seu poema:

“Mas quando um velho ácer ou um carvalho antigo,
Patriarca da floresta ergue o venerável rosto amigo,
Que toda a sua tribo, à sua volta se enfileira,                    
Compondo a sua corte com respeito e maneira;
Porque a árvore isolada agrada aos campos que decora.
Com muitas mais escolhas e mais gosto agora.”


[“Mais lorsqu'un chêne antique, ou lorsqu'un vieil érable

Patriarche des bois, lève un front vénérable,

Que toute sa tribu, se rangeant à l'entour,

S'écarte avec respect, et compose sa cour;

Ainsi l'arbre isolé plaît aux champs qu'il décore.

Avec bien plus de choix et plus de goût encore.”] [1]

 

 A pintura de Berghem mostra na sua quase obecessão pelos pormenores com que pinta sobretudo as árvores, terá de facto influenciado a arte na França e na Inglaterra do século XVIII.

 

Le Chêne et le Roseau de Jules Coignet

A influência da literatura na pintura também permitiu a Jules Coignet ilustrar a conhecida fábula de Jean de La Fontaine (1621-1695), Le chêne et le roseau, vigésima segunda do seu primeiro livro de 1668.

A fábula é um diálogo entre o forte e grandioso carvalho e o frágil e rasteiro junco, que termina por uma tempestade que derruba o carvalho e que, graças à sua flexibilidade, permite ao junco manter-se de pé.

 

fig. 25 - Jules Louis Philippe Coignet (1798-1860), Le Chêne et le Roseau 1831. Óleo s/tela 78 x 102 cm. Château-Thierry, Musée Jean de La Fontaine.

 

 

Vieira Portuense e o Carvalho

Francisco Vieira o Vieira Portuense (1765-1805), pintou em 1797 e 1798 um quadro, com o título de "Queen Margaret and the Robber", que apresentou no Salão anual da Royal Academy of Arts, inaugurado em Londres a 21 de Abril de 1798.

 

fig. 26 - Francisco Vieira (1765-1805), Fuga de Margarida de Anjou 1797/8, óleo s/tela 127 x 101,8 cm. Museu Nacional Soares dos Reis.


A pintura actualmente no Museu Nacional Soares dos Reis com o título de A Fuga de Margarida de Anjou, retrata o episódio da História de Inglaterra de David Hume (1711-1776) de 1762. Baseado na lenda que contava que, quando os Iorque capturaram Henrique VI, a rainha Margarida (Marguerite d'Anjou 1430-1482) foge com o filho Eduardo de Westminster, o herdeiro do trona.

É, contudo, surpreendida durante a fuga por um assaltante a quem Margarida implora que poupe “a vida do filho do teu rei”. O salteador reconhecendo na criança o futuro rei de Inglaterra, acaba por nenhum mal lhes fazer e acompanhá-los até ao seu destino.

[“While in this wretched condition, she saw a robber approach with his naked sword; and finding that she had no means of escape, she suddenly embraced the resolution of trusting entirely for protection to his faith and generosity. She advanced towards him; and presenting to him the young prince, called out to him, Here, my friend, I commit to your care the safety of your king's son. The man, whose humanity and generous spirit had been obscured, not entirely lost, by his vicious course of life, was struck with the singularity of the event, was charmed with the confidence reposed in him; and vowed, not only to abstain from all injury against the princess, but to devote himself entirely to her servisse.” ][2]

 O episódio teria ocorrido na sequência da Guerra das Duas Rosas (1455-1485), entre as famílias Lancaster (rosa vermelha) e York (rosa branca), e que terminou com a subida ao trono de Henrique VII (1457-1509), da família Tudor, que optou por um emblema onde figuram as duas rosas.

Margarida de Anjou, surge ainda como personagem maior com a designação de Queen Margaret na trilogia de William Shakespeare Henry VI de 1591 (como a rainha interventiva que era) e na peça Richard III de c.1592, quando regressada a Inglaterra como rainha viúva sedenta de vingança pela morte do marido, o que, aliás, nunca aconteceu.

As árvores são carvalhos que Vieira Portuense, nesta procura de uma paisagem fiel à Natureza, estudava já na sua estadia em Londres.

 

fig. 27 - Pormenor da vegetação na parte superior do quadro.

 

fig. 28 - Pormenor do tronco caído.

 

Vieira Portuense procurava então estudar a representação da natureza como na ilustração do livro The Gardens – a tradução inglesa do poema Les Jardins de Delille - de Maria Henrietta Montolieu (1751-1832), publicado em 1782.

O livro apresenta quatro gravuras de Vieira Portuense e Francesco Bartolozzi (1727-1815), com quem Vieira então trabalhou.

Reproduzimos as duas primeiras dessas gravuras.

 

fig. 29Vieira Portuensis inv.t,  F. Bartolozzi, R. A. Sculp. Gravura I da edição de 1805 de The Gardens.

 

fig. 30 - Vieira Portuensis inv.t,  F. Bartolozzi, R. A. Sculp. Gravura II da edição de 1805 de The Gardens.


E pela mesma época Vieira também pintou um outro quadro Narciso na Fonte (c. 1797), onde a Natureza (frondosos carvalhos, o lago, o céu, a fonte) enquadram (ou esmagam!) reduzidas figuras mitológicas.

A fonte representa nesta pintura o mesmo que os vestígios de uma casa gótica no quadro A Fuga de Margarida de Anjou, ou seja, a presença de uma construção artificial lembrando a acção humana na paisagem e na Natureza.

 

fig. 31 - Francisco Vieira, Vieira Portuense (1765-1805) Narciso na Fonte c. 1797, óleo s/ tela, 100 x 126,5 cm. Museu Nacional de Arte Antiga.

 

E nos seus desenhos também Vieira Portuense tem apontamentos de árvores.

 

fig. 32 - Vieira Portuense, Desenho de uma árvore. Museu Nacional de Arte Antiga.

 

A Great Oak Tree de John Constabl

Na mesma época John Constable (1776-1837) desenha a carvão um carvalho intitulado A Great Oak Tree.

fig. 33 - John Constable (1776-1837), A Great Oak Tree, ca. 1801, Black chalk with gray wash, 21x 17 cm. National Gallery of Art, Washington.

 

 

O carvalho como figura central do quadro de Louis Noël

 

E o magestoso carvalho como tema central da pintura surge ao longo do século XIX, como ilustra o quadro Étude de Chênes de Louis Noël (1824-1904).

 

fig. 34 - Louis Noel (1824-1904), Étude de chênes, Óleo s/tela 46 x 54 cm. Saint-Brieuc Musée d’Art et d’Histoire.

 

Le Chêne de Vercingétorix de Courbet

 O carvalho torna-se polémico e político com Gustav Courbet que pintou, em 1864, um quadro Le Chêne de Flagey em que o carvalho existente não longe da quinta onde nasceu, é também a personagem central da sua tela.

fig. 35 - Gustav Courbet (1819-1877), Le chêne de Flagey 1864, óleo s/tela 89 x 110 cm. Museu Courbet, Ornans França.

 

O carvalho ocupa assim, a quase totalidade do espaço da tela e é um verdadeiro retrato do que então existia em Fagey na região natal de Courbet. Tratado de uma forma realista - mostrando a influência que então já tem a fotografia na pintura da época – é, no entanto, pintado de maneira a sublinhar a sua magestosa presença e a grandiosidade da sua folhagem.

O quadro gerou polémica porque Gustav Courbet quando em 1867 expôs o quadro acrescentou ao título “appelé Chêne de Vercingétorix, camp de César près d’Alésia, Franche-Compté”, dando-lhe uma conotação política.

Em França no Segundo Império (1852-1870) tinha-se estabelecido uma polémica sobre o verdadeiro lugar onde se deu a batalha de Alésia (52 a.C.), onde os romanos comandados por Júlio César (100-44 a.C.) venceram os gauleses liderados por Vercingétorix (80-46 a.C.).

A polémica era entre Alise Sainte-Reine na Borgonha como defendia o próprio imperador Napoleão III (1808-1873) ou Alaise no Franche-Compté, a região natal de Courbet que o pintor tanto amava e defendia.

Assim o quadro tornou-se simbolo do confronto político entre Napoleão III e Gustav Courbet, entre Vercingétorix e Júlio César entre o poder local e o poder central.

 

O Carvalho de Miguel Torga

 Para terminar este parêntesis sobre o carvalho, lembremos o poema de Miguel Torga, evocando o carvalho como “o pai da montanha” e traçando a sua personalidade.

“Eis o pai da montanha, o bíblico Moisés
Vegetal!
Falou com Deus também,
E debaixo dos pés, inominada, tem
A lei da vida em pedra natural!

Forte como um destino,
Calmo como um pastor,
E sempre pontual e matutino
A receber o frio e o calor!


Barbas, rugas e veias
De gigante.
Mas, sobretudo, braços!
Longos e negros desmedidos traços,
Gestos solenes duma fé constante…

Folhas verdes à volta do desejo
Que amadurece.
E nos olha a prece
Da eternidade
Eis o pai da montanha, o fálico pagão
Que se veste de neve e guarda a mocidade
No coração!”
[3]

 


[1] Jacques Delille (1738-1813), Les Jardins, Poëme par Jacques Delille. Nouvelle Édition revue, corrigé et augmentée. Chez L. G. Michaud, Libraire Rue de Cléry, n.º 13 Paris. M. DCCC. XX. Chant le deuxième (pág.67).

[3] Miguel Torga (1907-1995), A um Carvalho, Diário V. 1951.


 

 

Regresso ao percurso de James Murphy

 

2 Arrifana

 No seu percurso Murphy chega no Sábado dia 24, à Arrifana (St. Antonio da Rafana) [3].

 “24 de Janeiro. Aqui os nossos galegos entregaram-nos à nossa sorte e regressaram ao Porto. Às cinco da manhã continuamos o nosso caminho, no meio de uma chuva incessante, até Santo António da Rafana [Arrifana], onde nos alojámos para pernoitar.

A refeição, que incluiu jantar e ceia, consistia em pão, vinho, peixe seco (bacalhau?) e azeite; o último eu não provei, pois reparei no galheteiro reabastecido com a lamparina. Um senhor português que se sentou ao meu lado gritou num inglês estropiado: "Isso é péssimo, senhor, mas não espere melhor até chegar a Lisboa."

[“January 24. Here our Galicians consigned us to our fate, and returned to Oporto. At five in the morning we continued our journey, amidst incessant rain, to St. Antonio da Rafana [Arrifana], where we took up our lodging for the night.

Our repast, which included dinner and supper, conisted of bread, wine, dried fish, and oil; the latter I did not taste, as I saw the cruet replenished from the lamp. A Portuguese gentleman who sat next me, cried in broken English, " This is bad fare, Sir, but you must expedt no better till you get to Lisbon."] [1]

Uns anos mais tarde da passagem de Murphy por Arrifana, quando por adeu-se um terrível episódio nesta localidade e que marcou por muito tempo os seus habitantes. [2]

No dia 17 de Abril de 1809, foram fuzilados pelas tropas francesas os que haviam realizado uma embuscada em Riba-Ul e em que perdeu a vida um sobrinho do general Nicolas Jean de Dieu Soult (1769-1851). Tendo a população refugiado na igreja os soldados franceses fizeram sair os homens e contando-os até cinco, separavam este e também o fuzilavam.


3 Albergaria a Velha

 No dia seguinte, um Domingo, Murphy de Arrifana dirige-se para Albergaria. [4]

“Domingo, 25 de Janeiro. Os nossos arrieiros recusaram-se a partir esta manhã sem antes assistir à missa. Acompanhamo-los a uma pequena capela, a cerca de meia milha da aldeia, onde um venerável velho padre celebrou o serviço do dia com grande decência.

O auditório tinha uma aparência de respeitabilidade e não se via, entre as pessoas, nenhuma cuja maneira de vestir denotasse miséria. A jornada daquele dia foi mais gratificante do que a anterior, pois o tempo estava bom e o caminho razoavelmente limpo.

Em direção ao Oeste contemplámos uma agradável vista sobre o mar; as terras das margens pareciam bem cultivadas e as montanhas plantadas com árvores. Às cinco horas concluímos a nossa viagem, numa pequena aldeia chamada Algarve Veilha, [Albergaria a Velha] a nove léguas bem contadas do Porto.”

[“Sunday January 25. Our muleteers would not depart this morning till they heard divine service. We accompanied them to a small chapel, about half a mile from the village, where a venerable old father celebrated the service of the day with great decency.

The auditory had a respectable appearance; not one was to be seen among them whose apparel bespoke wretchedness. This day's journey was more pleasant than that of the foregoing, as the weather was fair, and the way tolerably clean. Towards the West side had an agreeable prospect of the sea; the land bordering on the coast appeared in good cultivation, and the shelving mountains were planted with trees. At five o'clock we concluded our Sabbath-day's journey, at a little village called Algarve Veilha, [Albergaria a Velha] nine computed leagues from Oporto.”] [3]


Pelo seu lado, também William Kinsey ao descrever este percurso entre o Porto e Coimbra refere a estalagem de Albergaria gerida por dois padres e onde um deles tocava guitarra e compunha modinhas.

(…) Albergaria Velha, onde existe uma boa estalagem mantida por dois padres, com a assistência, ou melhor, sob o domínio da sua irmã. Um dos dignos eclesiásticos é um entusiasta da música, e muitas vezes ocupa as tediosas horas de um viajante cansado com os sons suaves da sua guitarra, e se devidamente lisonjeado, pode mesmo entoar uma modinha por ele composta.”

[(…) Alvergaria Velha, where there is a good estalagem kept by two priests, with the assistance, or rather under the dominion, of their sister. One of the worthy ecclesiastics is an enthusiast in music, and often beguiles the tedious hours of the wearied traveller with the sweet sounds of his guitar, and if properly flattered, may be coaxed out of a modinha of his own composition.”] [4]

 

4 Avelãs?

No Domingo, dia 26 de Janeiro, Murphy continua o seu percurso atravessa o Vouga, refresca-se no Sardão [5], passa por Vila Bela [Avelãs?] e chega nesse dia à Mealhada.

“26 de Janeiro. Partimos às seis da manhã, e passamos por uma região abundante, diversificada com vales e serras, revestidas de bosques de abetos e sobreiros. Atravessando o rio Vouga encontramos outro, a curta distância, com o nome de Rio da Bella.

Depois de tomarmos um refresco no Sardad [Sardão] passamos pela Villa da Bella [Avelãs?] cuja aparência não justifica o nome.”

["January 26th. We set out at six o'clock in the morning, and passed through a pleafant country, diversified with hill and dale, clothed with groves of spruce and cork trees. Having crossed the river Vouga we met another, a short distance from thence, properly named Rio da Bella.

After taking some refreshment at Sardad [Sardão] we passed through Villa da Bella [Avelãs?] the appearance of which does not justify the name.]

Como não encontrei qualquer referência a um Vila Bela, e como Murphy se queixa da dificuldade de entender a pronúncia local, penso que a povoação referida será Avelãs.


5 Mealhada

No final da tarde desse Domingo, Murphy assinala a sua chegada à Mealhada [7] onde pernoita.

“Mealhado [Mealhada] fecha a jornada; assim que assentamos, a mesa estava posta com pão, mel, fruta e vinho.”

[“Melhado [Mealhada] closed this day's journey; as soon as we sat down, the table was spread with bread, honey, fruit, and wine.”] [5]

 

6 Coimbra

E finalmente, às 10 horas da manhã de Segunda-Feira, Murphy chega a Coimbra cujo panorama o surpreende e encanta, e que, por isso, descreve romanticamente.

“O dia 27 de Janeiro ofereceu a paisagem mais sublime que já vi. Chegamos ao cimo da montanha mais isolada nesta parte do país ao nascer do dia, quando alguns raios brilhantes, de uma cor púrpura profunda, começaram a despontar no céu a nascente. Estes logo se transformaram num feixe de raios de um tom de açafrão, que pareciam ascender como as chamas de um vulcão; a sua rápida expansão dissipou instantaneamente todas as sombras e encheu o horizonte com um glorioso esplendor.”

[“January 27th offered the most sublime prospest I ever beheld. We reached the summit of the lostiest mountain in this part of the country about break of day, when a few seeble rays, of a deep purple colour, began to shot along the Eastern sky. These shortly yielded to a transiente cone of rays of a saffron hue, which appeared to ascend like the flames of a volcano; their rapid expansion instantly dispelled every gloom, and filled the horizon with a blaze of glory.”] [6]

 

Dada a quase coincidência das datas da chegada de Murphy podemos considerar que Coimbra apresentava então esta imagem publicada pelo Professor Doutor António Filipe Pimentel na revista Rua Larga de Julho de 2009, da reitoria a Universidade de Coimbra.

fig. 36 - Autor desconhecido. Vista de Coimbra c. 1800. Desenho pena e aguarela s/ papel 19,7 x 31,9 cm. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Publicado por António Filipe Pimentel na revista Rua Larga n,º 25 de Julho de 2009.

 

No artigo publicado e acompanhando o desenho, transcrevemos parcialmente o que escreve António Filipe Pimentel e que identifica os pormenores do edificado.

(…) “Com efeito, nela avulta, em primeiro plano, a ponte manuelina, ainda rematada pela torre da portagem e, da Estrela (com a muralha da couraça ainda livre de adições urbanas) à Sapiência (Santa Cruz transcende já a perspectiva do desenhador) é ainda a cidade intocada pelos efeitos da desamortização dos bens eclesiásticos de 1834, o que se divisa. Por outro lado, no Paço das Escolas – cuja configuração geral persiste a que chegaria aos dias de hoje (excepção feita às obras de requalificação dos alçados exteriores da Biblioteca Joanina promovidas pela DGEMN na década de 1940) –, ostenta-se já, plenamente edificado, o Observatório Interino, projectado por Manuel Alves Macomboa em substituição do do castelo, concluído exteriormente em 1791 e que ocuparia o topo livre do pátio escolar até à sua demolição, nos anos 50 do século findo: o que objectivamente lhe faculta um terminus ante quem. E de igual modo se ostenta ainda, essencialmente íntegra, a grande plataforma contrafortada que o protegeria pelo ocidente, bem visível no desenho de Hoefnagel, erguida por Boitaca ao tempo das grandes obras de D. Manuel I.

Entretanto e para Sul (o extremo direito do desenho) o grande espaço da cerca dos Beneditinos que o Jardim Botânico ocuparia – sabendo-se, como se sabe, que seria a obra mais demorada do complexo dos estabelecimentos científicos pombalinos – permanece ainda aparentemente intocado (fora a mata), com casario avulso que o respectivo plantio faria remover, recortando-se contra o aqueduto, plenamente visível: e é este um dado que releva para a história daquele que é, inquestionavelmente, um dos mais belos e fascinantes trechos do património universitário e também para a história do desenho, tendo em conta saber-se que a conclusão deste programa seria um dos grandes projectos de D. Francisco de Lemos no seu segundo reitorado (1799-1821), ocupando-o essencialmente nos anos terminais, onde a má-língua universitária o cominaria de gastar os recursos da instituição “em construir muros de pedra e cal, e socalcos, que, não podendo concorrer para o adiantamento das sciencias, pelos seus muitos defeitos, nem ao menos servem de recreio”. Obtido, pois, por esta via, o terminus ad quem – o arranque do plantio do Botânico –, a cronologia do desenho parece, com efeito, poder estabilizar nos inícios de 1800, garantindo assim à cidade um terceiro marco iconográfico, com intervalo quase secular: Hoefnagel, em finais do século XVI; Baldi, no terceiro quartel do XVII; o que nos ocupa, dos anos finais do século XVIII ou (mais provavelmente) já dos inicios do XIX. De facto, em primeiro plano, fornecendo a escala da composição, o que parece ser o esboço de um casal de camponeses, pode, na verdade, proporcionar ainda – mais, talvez, que o desenho do edificado, num país então de austero paisagismo urbano (logo, com diminutas possibilidades de confronto) – a pista para uma indagação autoral que seria objectivamente útil apurar.” [7]

 


[1] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795. (pág. 20).

[2] Em Arrifana ergue-se um Monumento da autoria de Domingos dos Reis Maia decidido no centenário do episódio, mas apenas inaugurado em 17 de Abril de 1917.

[3] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795. (pág. 21).

[4] rev. William Morgan Kinsey (1788-1851), Portugal Illustrated Letters, Embellished with a map, plates of coins, wignettes, and a various engravings of costumes, landscape scenery, &c. Letter XIV. Treuttel, Würtz, and Richter, Soho Square London 1828. (pág.374).

[5] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795. (pág. 23).

[6] James Cavanah Murphy (1760–1814) Architecte, Travels in Portugal, through the provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years of 1789 and 1790: consisting of observations on manners, custos, trade, public buildings, arts, antiquities of the kingdom. Printed for Strahan and T. Cadell Jun. and W. Davies. London 1795. (pág. 23).

[7] António Filipe Pimentel, Vista inédita de Coimbra in Rua Larga, revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, n.º 25 de Julho de 2009. (pág. 36).


Coimbra na gravura romântica

 

No início do século XIX um oficial inglês o Major General Thomas Staunton St. Clair (1785 – 1847), que participou na Guerra Peninsular, desenhou uma vista de Coimbra provavelmente em 1811 ou 1812, impressa em Londres em 1815. [1]

Coimbra foi reconquistada aos franceses em Outubro de 1810, pelas tropas anglo-portuguesas - das quais Thomas Stauton fazia parte - sob o comando de Nicholas Trant (1769-1839), o qual havia participado nos combates do Porto em 1809 e a quem é dedicada a Planta Redonda do Porto.

 

fig. 37 - Thomas Staunton St. Clair (1785-1847), City of Coimbra (1812). Água-tinta e gravura 37 x 50,8 cm. C. Turner and Colnaghi, London1815. Royal Collection Trust.

 

Embora nem todos estes versos se refiram directamente a Coimbra e ao Mondego, por aqui esteve Luís de Camões. Por isso estes versos do poeta poderiam servir de legenda á gravura.

“Vamos alli, que alli bosque sombrio

Nos dará fresco abrigo, assento o prado,

Formosa vista o valle, o monte, o rio:

 O rio, que verás tão socegado,

Que te parecerá que se arrepende

De levar ágoa doce ao mar salgado.” [2]

 

E a gravura representa uma vista na direcção de Nordeste com uma luz de Sudeste, talvez na

primavera

Que os deleitosos campos pinta e veste,” [3]


Ao fundo por entre as colinas

“Vão as serenas ágoas

Do Mondego descendo,

E mansamente até o mar não parão;”  [4]

 

As duas margens do Mondego estão ligadas pela Ponte de Santa Clara. A poente o mosteiro de Santa Clara e na margem nascente a cidade de Coimbra encimada pela Universidade.

No primeiro plano à esquerda um pensativo pastor com os seus cães e o rebanho já que como diz o poeta “Nem pastor ha no campo sem tristeza.” [5]

 Á direita dois casais, descem para o rio com os seus burros, envergando os seus trajes característicos, elas de trouxa na cabeça, mas todos com os característicos grandes chapéus de largas abas.

“Adornados andar vi os pastores

De quanto por o mundo se deseja;

E vi co'o campo competir nas côres

Os trajes, de obra tanta e tão sobeja,

Que se a rica materia mio faltava,

A obra de mais rica sobejava.” [6]

 

 Os trajes populares


fig. 38 - Autor Desconhecido, Estampa 10 Peasants of Upper Beira Picturesque Review of the Costume of the Portuguese 1836? álbum de 14 guaches, Marca de água "W. Brookman 1828" em várias folhas BNP

 Na época desenvolve-se, nas artes e na ilustração, um particular interesse pelo traje popular característico de uma região ou de um país, porque contribuía na definição da sua identidade.

No Álbum Costumes Portugueses, de João Palhares (1819-1891), também as mulheres da Beira litoral são representadas com esses chapéus de abas largas.

 

fig. 39 - João Palhares (1819-1891), Homem e mulher de Ovar. Litho. Palhares T. da Palha 15. in Costumes Portugueses, álbum de 60 litografias aguareladas Lisboa c.1850.

 

Nos meados do século o pintor portuense Francisco José Resende (1825-1893) [7], entre as suas obras, pintou figuras populares com os seus trajes característicos, incluindo pescadores e camponeses da Beira litoral.

Naquele que é talvez mais conhecido e reproduzido quadro de Francisco José de Resende a “Camponesa de Ílhavo”, a figura feminina, com um traje onde sobressaem os múltiplos adereços, tem, sobre a cabeça e por cima de uma mantilha, um grande chapéu de aba larga.

 

fig. 40 - Francisco José Resende (1825-1893), Camponesa de Ílhavo 1867, óleo s/tela 66 x 47 cm. Museu José Malhoa.

O mesmo tema é tratado por Miguel Ângelo Lupi (1826-1883) num estudo de uma figura feminina com traje semelhante e com o característico chapéu de largas abas.

 

fig. 41 - Miguel Ângelo Lupi (1826-1883), Ovarina1875. Desenho a lápis sobre Papel acastanhado, 30,5 x 46,5cm. Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea.

 

Outras gravuras de Coimbra

Já nos anos 30 do século XIX são publicadas, em pleno romantismo, várias gravuras de Coimbra mostrando o panorama que tanto deslumbrou James Murphy.

Dessas escolhemos uma de James Holland [8] e outra de George Vivian [9].

 

A gravura de James Holland

 A gravura View of Coimbra de James Holland faz parte de um conjunto de 10 que ilustram o livro The tourist in Portugal [10] de William Henry Harrinson (1773-1841) publicado em Londres em 1839.

 

fig. 42 - James Holland (1800-1870) pintor, Edward Goodall (1795-1870) gravador e Robert Jennings (1811?-1851) editor, Coimbra 1838, gravura 13 x 19 cm. Biblioteca nacional de Portugal. In Harrison Tourist in Portugal. (pág. 117).


William Harrison narra o seu percurso do Porto até Coimbra, passando por Oliveira de Azemeis, e acomodando-se em Albergaria no primeiro dia. No dia seguinte passa por Sardão e chega a Coimbra.

 “Coimbra não é vista pela estrada pela qual a abordamos; mas a vista da cidade das colinas ao sul é extraordinariamente bela.

A cidade de Coimbra ergue-se na encosta de uma colina, aos pés da qual corre o rio Mondego.”

[“Coimbra is not seen to advantage from the road by which we approached it; but the view of the city from the hills on the south is remarkably fine.

The city of Coimbra is built on the side of a hill, at the foot of which flows the river Mondego.”] [11]

 

A gravura de George Vivian

fig. 43 - George, Vivian (1798-1873) pintor e Louis Haghe (1806-1885) litógrafo. Coimbra View in the same direction wuth the preceding but from a more distant point having the course of the Mondego towards the Coast.1839. Gravura colorida 28 x 42 cm. Estampa XV de Scenery of Portugal & Spain on stone by L. Hage. P & D. Colttchi & C.ia Pall Mall, Ed. A Ckermann & C.ª Strand. Brittner & Goupil Paris A. Asher, Derlyn. London 1839.

 

Sob uma luz matinal, a Alta de Coimbra é vista no topo da colina à esquerda, e entrevê-se a cidade junto ao Mondego que serpenteia por entre as terras arborizadas até ao horizonte.

À esquerda da imagem, dois homens preparam tábuas, para a construção naval ou civil, serrando troncos que foram transportados por um carro de bois aí estacionado.

Junto ao carro de bois, o condutor

(…) “deitado

Da relva faz colchão, do Campo leito:

E tudo á freferi dorme socegado.”  [12]

 Na estrada ao centro caminha um outro carro de bois e à direita dois viajantes com as suas mulas.

 


[1] Gravada por Charles Turner (1774-1857) e editada por Colnaghi & Co (c.1785-1911).

[2] Luís Vaz de Camões, Éclogas. Écloga XI (pág. 622). In Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão - Editores, Rua das Carmelitas 144. Porto 1970.

[3] Luís Vaz de Camões, Éclogas. Écloga VI (pág. 587). In Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão - Editores, Rua das Carmelitas 144. Porto 1970.

[4] Luís Vaz de Camões, Canção IV (pág. 234). In Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão - Editores, Rua das Carmelitas 144. Porto 1970.

[5] Luís Vaz de Camões, Écloga I (pág. 524). In Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão - Editores, Rua das Carmelitas 144. Porto 1970.

[6] Luís Vaz de Camões, Écloga I (pág. 519 e 520). In Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão - Editores, Rua das Carmelitas 144. Porto 1970.

 [7] Ver de António Mourato, Francisco José Resende  (1825-1893). Figura do Porto Romântico. Edições Afrontamento Porto 2007.

[8] James Holland (1800-1870), esteve em Portugal entre nos meses de Verão e do Outono de 1837.Ilustrou o livro The tourist in Portugal, de William Henry Harrison publicado em Londres em 1839.

[9] George Vivian (1798-1873), desenhador e pintor em Londres, viajou através de Espanha e Portugal. No seu regresso, Vivian publicou uma colecção de litografias sob o título “Scenery of Portugal & Spain” constituído por 33 desenhos gravados em pedra por L. Haghe (1806-1885). Tornou-se célebre a gravura da praça de S. Bento no Porto e que foi reproduzida numa nota de 100 escudos do Banco de Portugal.

[10] William Henry Harrison (1773-1841), The tourist in Portugal, illustrated from paintings by James Holland. Ed. Robert Jennings, printed by Maurice, Clark, & Co. London 1839.

[11] William Henry Harrison (1773-1841), The tourist in Portugal, illustrated from paintings by James Holland. Ed. Robert Jennings, printed by Maurice, Clark, & Co. London 1839.

[12] Paulino António Cabral de Vasconcellos, Abade de Jazente (1719-1789). Poesia de Paulino Cabral de Vasconcellos na oficina de Alvarez Ribeiro anno de 1786. (pág. 45).



CONTINUA

 


 


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