quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

poemas recuperados 5

José de Ribera (1591-1652), Filósofo com um espelho 1ª metade do século XVII. Óleo s/tela 113 x 89 cm. Rijksmuseum Amesterdão.


Espelho

"Para hum homem se ver a si mesmo, saõ necessarias tres cousas: olhos, espelho & luz. Se tem espelho, & é cego, não se póde ver por falta de olhos; se tem espelho & olhos, & he de noyte, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, ha mister espelho & ha mister olhos."  Padre António Vieira *


Nesse espelho em que me vejo esquecido

está esse outro eu, um quase semelhante.

É outro eu, o negativo, simétrico de sentido,

a vigiar-me fixo nesse espaço equidistante.

 

Sou eu ou apenas quem eu penso que sou?

Sou eu ou apenas minha figura mal-olhada?

Ou é o amável sussurro em que se esconde

o cansaço do olhar em lágrima tão salgada?

 

Esqueço que nesse espelho como em janela

onde, como amigo que não sou, ele espreita.

Desconfio-me da invertida visão, porque nela

sempre se vai trocando esquerda com direita.

 

Pesando o que me vejo e o que me fui vendo

no outro eu com quem sempre me confundo,

o que fui, o que senti, em tudo o que fui sendo,

patética intimidade em que sempre me afundo.

 

Podes tu? – diz o outro eu, em tom assaz duro,

aprender esses ocultos mistérios e os segredos

que só eu guardo como teu eco. O íntimo escuro,

dos restos já gastos de murmurantes pesadelos?

 

Farto de me ver em tais andanças não respondo.

Olhos nos olhos, eu e o outro, qual o mais velho,

não tendo como lhe responder, assim de pronto,

apago a luz. logo se vai o eu-maldito do espelho.

 

* Padre Antônio Vieira (1608-1697), Semam da Sexagesima Prégado na Capella Real 1655 in Sermoens do P. Antonio Vieira da Companhia de Jesus. Prégador de Sua Alteza Primeyra parte dedicada ao Principe N.S. Na Officina de Ioam da Costa, Lisboa MDCLXXIX. (pág. 18).

 

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