terça-feira, 23 de novembro de 2021

Labirintos da memória (1)


 

“Mas só aquele tempo que é passado

Co' tempo se não faz tempo presente.” [1]

Camões

 

 

A Promessa de Bernardo Santareno

 

 

“…  tudo quanto olhei, fiquei em parte.

Com tudo quanto vi, se passa, passo,

Nem distingue a memória

Do que vi do que fui.” [2]

Ricardo Reis

 

 

 

 

Ao Júlio Gago com um abraço

 

Há 64 anos, no Sábado 23 de Novembro de 1957, o Jornal de Notícias publica um anúncio do Círculo de Cultura Teatral, subsidiado pela (então recente) Fundação Gulbenkian, publicitando a estreia no Teatro Sá da Bandeira da peça “A Promessa” de Bernardo Santareno (António Martinho do Rosário 1920-1980), pela companhia do Teatro Experimental do Porto dirigida por António Pedro (1909—1966).

Jornal de Notícias, Sábado, 23 de Novembro de 1957.


Na anterior Quinta feira dia 14, António Pedro havia já anunciado, em entrevista ao Primeiro de Janeiro a realização de “um original português, “A Promessa” da autoria de Bernardo Santareno”, que António Pedro considerava, com exagerado entusiasmo, “o maior dramaturgo português”.

Entretanto na capital, o Diário de Lisboa apenas faz uma seca referência. “No Teatro Sá da Bandeira, do Porto, inauguram-se hoje as actividades do grupo cénico do teatro Experimental (secção profissional). Sob à cena, em estreia, um novo original português “A Promessa” de Bernardo Santareno, que faz também a sua estreia em teatro.” E nos dias seguintes apenas a referência à continuidade da representação.

Talvez porque, em Lisboa precisamente neste dia 23, estreia no teatro Nacional D. Maria “As Bruxas de Salém” de Arthur Miller (1915-2005), na versão portuguesa de António Quadros (1923- 1993), pela companhia Rey Colaço-Robles Monteiro.

A estreia  

Na estreia da peça é distribuído um Programa com um texto de António Pedro, e uma ficha técnica de duas páginas, onde se refere a encenação de António Pedro; os figurinos e cenários de Augusto Gomes (1910-1976) e António Pedro.

Refere-se ainda a distribuição dos papéis, por ordem de entrada em cena, elencando as personagens e os respectivos actores e actrizes, bem como os figurantes, e os diversos colaboradores na montagem da peça, cujas fotografias são de Fernando Aroso (1921-2018).

Programa da peça "A Promessa"/ Teatro Experimental do Porto (TEP) / Teatro Sá da Bandeira. 1957.

 

Uma das fotografias de Fernando Aroso (1921-2018), mostra uma cena de A Promessa, onde se destacam, entre outros, os que conheci ou convivi: João Guedes (1921-1983) no papel de José, Vasco de Lima Couto (1923-1980) no papel de Padre, Dalila Rocha (1920-2009) encarnando a Maria do Mar e Alda Rodrigues (1939-1988) que fazia de Maria da Avó. E o cenário de Augusto Gomes que representa “uma aldeia de pescadores portugueses (…) sem nenhuma intenção folclórica ou de rigorismo social.” 


Fernando Aroso, Cena de A Promessa, pela Companhia do TEP 1957.

No dia seguinte A Promessa é referida no Jornal de Notícias: Noites de estreia – Sá da Bandeira: “A Promessa” – peça em três actos de Bernardo Santareno por António Ramos de Almeida (1912-1961), um velho amigo de meus pais, e ainda no Primeiro de Janeiro do mesmo dia, na rubrica Primeiras representações.

 

Esse acontecimento, pelo tema, provocou larga polémica na elite cultural da cidade, sobretudo por uma leitura superficial da peça, (veja-se os nomes das personagens), motivando a reacção na comunicação social de sectores da igreja católica, e por isso, das camadas mais conservadores da sociedade portuense e do próprio regime salazarista.

A sua exibição, antes da sua proibição (?), prolongou-se até ao final do mês e ao 1º de Dezembro.

 

Os meus pais, que assistiram à estreia da peça, pertenciam a um grupo de amigos e conhecidos da parte mais culta e mais civilizada da nossa cidade” como Ramos de Almeida escreve, “composta, na sua maioria, por escritores, artistas, jornalistas, professores, médicos, advogados, engenheiros, estudantes, isto é, todo um escol intelectual insatisfeito e ansioso.”

Em 1951 tinham estado ligados à fundação do Circulo de Cultura Teatral-TEP e em 1953 quando o TEP apresentou o seu primeiro espectáculo, o meu pai pertencia com João Meneres de Campos (1912-1988) à Direcção presidida por Alexandre Babo (1916-2007) e a minha mãe era membro do Conselho de Leitura, com Ramos de Almeida e Eugénio de Andrade (1923-2005).

 

A polémica estendeu-se aos debates, anunciados no Programa então apresentado, e que se iniciaram no dia 29 no Teatro de Algibeira do CCT.

 

O “Teatro de Algibeira (ou de Bolso)” havia já sido inaugurado no ano anterior (Terça-feira 8 de Maio de 1956), na Rua do Ateneu Comercial do Porto, segundo um projecto do arquitecto Luís Praça.

Como a lotação era muito reduzida, apenas 134 lugares, A Promessa foi exibida no Teatro Sá da Bandeira. O Teatro de Algibeira foi infelizmente demolido em 1980.


A sala de espectáculos do Teatro de Algibeira.

 

Adolescente e no início do meu 5º ano liceal, e porque na altura havia já sido instituída a classificação de espectáculos, não pude obviamente assistir, mas tive eco pelos meus pais do “escândalo” que a peça então gerou.

Pude, contudo, ler o exemplar da peça existente na casa paterna, e dez anos depois assistir à sua nova encenação embora com cortes da Censura.

Toda a polémica gerada em torno das escassas 8 ou 9 iniciais representações contribuiu, contudo, na época, para a afirmação do autor Bernardo Santareno, e sobretudo do jovem Teatro Experimental do Porto e de todo o seu elenco, na sua luta pela renovação do Teatro. 

António Pedro termina o seu pequeno texto do Programa escrevendo:

“Para isso lutaremos. E o muito que já se conseguiu, ajuda-nos a regar de esperança um canteiro de sonho onde as ervas ruins, que sempre nascem, morram à falta de ar pela abundância das flores.”

 


[1] Luís de Camões, (c.1524-1580), Soneto CCCXLVI in Obras de Luís de Camões. Lello & Irmão – Editores, Porto 1970. (pág.180).

[2] Fernando Pessoa (-1935), Odes de Ricardo Reis, poema de 7 de Junho de1928 in Obra Poética,. Companhia Aguilar Editôra, Rio de Janeiro 1965. (pág.282).

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