terça-feira, 3 de setembro de 2024

poemas recuperados 31

 


Rudolf Schlichter (1890-1955), Saloon 1917, aguarela e lápis s/papel 41,5 x 27,5 cm.
Mutual Art.


Esquisito Inventário 

À maneira de Jacques Prévert (1900-1977) ou Alexandre O’Neil) (1924-1986).


“(…) Ao cabo de misérias e tormentos,

Continua

A ser a minha imagem que flutua

  Na podridão dos charcos luarentos.”

Miguel Torga*

 

um inconveniente não coberto pelo seguro

um peso pesado que se pensa peso pluma

uma janela basculante de um cristal impuro

uma banheira cheia sem suficiente espuma

 

um boi de carga com olhar manso e pacato

uma dermatite de um novo rico embriagado

um cavalo empinado relinchando alucinado

um veneno atrofiante sempre que respirado

 

um adormecido oligarca russo endinheirado

um internato discreto com esgares de aflitos

um sorriso teclado naquele piano desafinado

uma pirueta maluca que põe todos aos gritos

 

uma luz lívida e pálida escorrendo pelo muro

um longe que é mais perto que um perto lugar

um espanto feminino por não ver o seu futuro

uma paixão malcurada que até nos fez corar

 

uma alma perdida com as raízes arrancadas

uma praia solitária onde o mar é espumante

uma ferida no segredo da condição humana

uma eternidade durando apenas um instante

 

um navio afundado pelas névoas do alto mar

um jardim vazio do perfume de flores alheias

uma mãe que diz que é feio um dedo apontar

um poeta morrendo pela iniquidade das ideias

 

*Miguel Torga Inventário de Cântico do Homem 1950 in Miguel Torga Antologia Poética 7ª edição D. Quixote 2014 (pág. 107)

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Imagens da cidade do Porto há cem anos 6

 

A propósito dos 100 anos do estádio do Lima

Porque foi o território da minha infância, adolescência e juventude, porque aí vivi entre 1945 e 1969 em casa de meus pais ao cimo da rua da Alegria, e de seguida um pouco mais a sul no empreendimento do Luso entre 1969 e 1977, esta foi durante muitos anos a minha paisagem quotidiana e ficou fazendo parte dos lugares da minha memória.

Assim, não posso referir o estádio do Lima e o Académico, sem lembrar o troço final da rua da Alegria com a fábrica de Mattos & Quintans, o campo do Luso, o empreendimento da Santa Casa da Misericórdia, e o Lima 5.

Em 1924, há cem anos, embora não saiba a data, o Académico Foot-Ball Club inaugurava o Estádio do Lima.

Em O Comercio do Porto de Quarta feira 13 de Agosto de 1924, a propósito “dos novos corpos gerentes da importante agremiação que é o Académico Foot-Ball Club”, refere que entre as várias iniciativas a que estão vinculados “avulta a construção do seu magnifico campo do Lima. E conclui O Comércio do Porto: os novos dirigentes “com os elementos que agora conta, estamos certos de que levará a bom termo essa gigantesca obra”

A “gigantesca obra” será um estádio completo com um campo de futebol, pista de atletismo em cinza, e uma pista em cimento de ciclismo (depois também utilizada para provas de automobilismo).


 

fig. 1 – O Estádio do Lima quando completo. Foto.  J. Portojo.

 

O sítio. A Quinta da Alegria

O Estádio do Lima e a rua com o mesmo nome, homenageiam o empresário João António Lima (18??-1890), que emigrado no Brasil fez fortuna e aí conheceu a brasileira Luzia Joaquina Bruce (18??-1917) com que passou a viver numa duradoura união, já que não podiam contrair matrimónio porque João António Lima fora casado.

Regressaram do Brasil e instalaram-se no Porto num palacete na rua de Costa Cabral, junto ao qual fundou a fábrica de tabaco “A Lealdade”. 

Na planta de Telles Ferreira de 1892 está aberta a rua do Lima e cartografada a propriedade de João António Lima, com a Casa e a Fábrica na rua de Costa Cabral.

 




fig. 2 – A propriedade de João António Lima. Detalhe da Planta de Telles Ferreira 1892 escala 1:5000

 

 

fig. 3 – A propriedade de João António Lima na Planta Cartográfica de Telles Ferreira à escala 1:500

 

Com a morte do empresário em 1890, Luzia Joaquina Bruce ficou a administrar os bens do casal dedicando boa parte da fortuna a ações de benemerência.



fig. 4 - Acácio Lino (1878-1956), Retrato de Luzia Joaquina Bruce 1933óleo s/tela Santa Casa da Misericórdia do Porto.

 

Entre as suas obras de benemerência destaque-se o Hospital da Lapa (inaugurado em 1904), onde foi colocada a estátua de João António Lima da autoria do escultor António Alves Pinto.

 


fig. 5António Alves Pinto. Estátua de João António Lima encimando o frontão do Hospital da Irmandade de N.ª Sr.ª da Lapa. CMP.

 

 

A Praça de Touros da Alegria 1901/1911

No início do século XX, a rua da Alegria ainda terminava na rua do Lima, junto à qual foi construída uma praça de touros

De facto, em 1 de Outubro de 1901, Álvaro de Almeida Pinto requer à CMP “a construção em madeira de uma Praça de Touros nos terrenos situados no extremo da rua da Alegria, conforme vai indicado no desenho junto.”

O projecto é do engenheiro Casimiro Jerónimo de Faria (?-?) professor da Faculdade de Engenharia, e que foi o autor entre outros, do projecto da Praça de Touros de Espinho (1906) e do Hospital Rodrigues Semide (1910 interrompido pela Grande Guerra e concluído em 1926.

Demolido em 1970)



fig. 6 – Casimiro Jerónimo de Faria, projecto da Praça de Touros da Alegria. 1901. AHMP.

 



fig. 7 - Casimiro Jerónimo de Faria, alçado exterior para a rua da Alegria. Pormenor do projecto de 1901.AHMP.

 

 

A praça foi inaugurada no Domingo 4 de Maio de 1902.



fig. 8 - Postal ed. Le Temps Perdu. Praça de Touros da rua da Alegria 1909. AHMP.

 

Escreve O Primeiro de Janeiro na Terça Feira 6 de Maio 1902:

“A inauguração da praça de touros do Porto, ao alto da rua da Alegria, excedeu todas as espectativas, por mais que toda a afiction muito e muito esperasse de corrida tão superiormente organizada – com touros de Carlos Marques, Fernando de Oliveira e João Marcellino a lidar a cavalo, Quinito, cadete e os outros na lide de pé. Os logares destinados ao público encheram-se completamente, retirando-se enumeras pessoas por falta de bilhetes, em que, todavia, os contactadores ganharam bons prémios. E em redor da praça conservou-se até ao fim da corrida uma multidão que daria, por certo, para mais duas enchentes. O “melhor Porto” assentou-se nos camarotes, nos fauteuils do touril, nas barreiras, na “sombra”. A burguezia pacata e mediana encheu a galeria, que é um logar magnífico.

O Povo, o bom povo entusiasta e festivo, aglomerou-se. Apinhou-se, ruidoso e premido no “sol”. A corrida esteve magnífica (…).”

[In No Tempo das Touradas – Da esplêndida corrida a tradição repudiada – Coord. Manuel Luís Real e Maria Helena Gil Braga. AHMP Porto Setembro 2002]

 

 




fig. 9 - Postal Porto. Tourada à antiga Portugueza: Carro dos Cavalleiros. Depois de 1905. Estrela Vermelha. Biblioteca Pública Municipal do Porto.








fig. 10 – Planta do Porto c.1907 no Guia do Porto Illustrado. Desenhos e Direcção Literaria de Carlos Magalhães. Edição da Empreza dos Guias Touriste, rua de Passos Manoel, Porto 1910

 

 

Voltando ao estádio do Lima e ao Académico, Luzia Bruce doou, à Santa Casa da Misericórdia do Porto, entre outros, os terrenos da Quinta do Lima.

 O terreno, foi arrendado em 1923 ao Académico Foot Ball-Club fundado por um grupo de estudantes em 1911 e que aí instalará a sua sede e onde irá construir o seu estádio.

 Durante anos este foi o aspecto da Fábrica e da Casa e a entrada do Académico na rua Costa Cabral.



fig. 11 - Teófilo Rêgo (1914- 1993). O Palacete da rua de Costa Cabral e o Académico F. C. 1961. AHMP.

 

 

Aberto o troço da rua da Alegria até à rua de Costa Cabral será nos anos 20 e 30 do século XX edificado.

Numa imagem de 1951, em que se vê uma prova de automobilismo na pista do Lima, do lado nascente na rua da Alegria, surge a fábrica de fiação e tecidos “Mattos & Quintans Lda.”.





fig. 12 – O Estádio do Lima tendo ao fundo a Fábrica Mattos & Quintans. Foto anos 50.

 

A Fábrica, criada em 1899 por Miguel Mattos de Almeida e José Augusto Quintans, em 17 de Março de 1903, requerem à Câmara Municipal do Porto “construir no seu terreno da rua d’Alegria um edifício para a instalação da sua fábrica conforme o projecto e memorias discriptivas juntas”

Assina o projecto o arquitecto Estevão Eduardo Augusto de Parada e Silva Leitão (1844-1907), (conhecido autor do prédio Arte Nova da rua Galeria de Paris n.º 26 a 34).

 

 


fig. 13  – A Fábrica tendo assinalada a parte a reconstruir. Fotografia do processo de 1938 AHMP

 

Com o incêndio de uma parte da Fábrica, em 1938 “A firma Matos & Quintans Limida da rua da Alegria nº 1924, desejando que lhe seja concedida licença para reconstruir o edifício destruído ultimamente por incêndio, e que é destinado a escritórios, como era anteriormente, de harmonia com a planta topográfica e projecto junto. Assim o requer.”

O novo projecto é assinado pelo arquitecto Aucíndio Ferreira dos Santos (18??-1961) e pelo engenheiro António Alla.





fig. 14 - Aucíndio dos Santos, Projecto de reconstrução da Firma Matos & Quintans Lda. Fachada Principal. 1938. AHMP

 

No remate do edifício, foi colocada uma escultura requerida à CMP em 17 de Agosto de 1939.

Assim a firma Mattos & Quintans requer da CMP que “desejando colocar na parte superior da platibanda do edifício que tem em construção, uma figura que á muitos anos é adotada nas etiquetas da industria de tecidos da fábrica dos requerentes, conforme vai indicado a camim no desenho”.

 

O novo edifício foi licenciado em 1939 e a sua construção concluída em 1940.

 

O Campo do Luso

 

Junto da Matos & Quintans, a sul, situava-se um outro campo de jogos, o campo do Luso, propriedade do Luso Atlético Clube.

Foi criado no seguimento da junção de duas agremiações chamadas Sport Clube Nacional, fundado em 1914 e especialmente dedicado a desportos náuticos, e o Portugal Foot Ball Club fundado em 1923.

 

 

Na planta dos finais de 40 para o plano Regulador de Antão Almeida Garrett vemos o recinto do Académico FC com as suas instalações incluindo o estádio do Lima

A ponteado a rua da Constituição prolongada para nascente (rua Carlos Malheiro Dias).

A rua da Alegria prolongada até à rua de Costa Cabral e à Avenida dos Combatentes da Grande Guerra.




fig. 15  - planta de 1950 (a vermelho o edificado).

 

 

No Campo do Luso foi construído um empreendimento da Santa Casa da Misericórdia (1960/68) segundo um projecto do arquitecto José Carlos Loureiro (1925-2022) e Luís Pádua Ramos (1931-2005).






fig. 16 – J.C. Loureiro, Perspectiva do projecto para a S. Casa da Misericórdia do Porto.


J. Carlos Loureiro vai introduzir um conjunto de inovações na urbanização que projectou para o Campo do Luso (1961/ 70). Estas inovações assumem particular importância na cidade do Porto, quando na década de 60, os conteúdos político-sociais do Movimento Moderno e da Carta de Atenas, que correspondiam a símbolos claros de afirmação social, politicamente empenhada e esteticamente avançada, começam a sofrer uma progressiva perda de significado. Apropriados por uma arquitectura consumista e especulativa, assistiu-se à banalização e adulteração dos seus princípios teóricos, funcionais e tecnológicos e, soluções como as baterias de blocos, os acessos em galeria e as coberturas em terraço, o uso do betão aparente e das caixilharias metálicas, e no interior dos edifícios a redução das áreas, a sala-comum e a cozinha-laboratório, tornaram-se de uso corrente, numa banalização que no Porto, não é alheia a construção dos Bairros Camarários do Plano de Melhoramentos (1956/66) então lançado.







fig. 17 – Teófilo Rêgo, Conjunto habitacional do Luso-Lima, 1963. In Porto Desaparecido https://www.facebook.com/PortoDesaparecido.

 

É neste contexto que se insere o projecto de J. Carlos Loureiro, que na sua implantação, de novo contrariando e criticando a tradicional proposta camarária de edifício-ao-longo-da-rua, cria - aproveitando o espaço intercalar entre o conjunto de dois blocos e duas torres de habitação [i] - uma inovadora e ampla praceta, articulando a solução num, “vasto espaço no qual os moradores dialogassem entre si, com as árvores, com a luz e o sol que elas filtram e onde as crianças possam brincar.”

Esta praceta, rebaixada, mas aberta para a rua, e onde a nascente se abre uma galeria, foi arborizada conferindo ao conjunto um ambiente de uma "unidade de vizinhança", aproximando-se de soluções então postas em prática nos países nórdicos.

 

 

Nos anos 70 era conhecido como a “ilha dos arquitectos” já que aí habitavam o Álvaro Siza, o Alcino Soutinho, o Júlio Anciães, o Duílio, o Manuel Teles, o Augusto Amaral e a Annie Günther, o José Gomes Fernandes, o Mário Trindade, o Gonçalo Canto Moniz, o António Moura

 

Para além dos que aí tinham o seu escritório como os autores do projecto J. C. Loureiro e Pádua Ramos, o Augusto Amaral e a Annie Günther, e o José Gomes Fernandes no r/c do prédio A.

 



[i] Com uma experimental recuperação do uso do azulejo como revestimento exterior dos edifícios, no seguimento dos estudos então efectuados pelo arquitecto, para a sua Dissertação no Concurso para professor da Esbap. De 1961.