A propósito dos 100 anos do estádio do Lima
Porque
foi o território da minha infância, adolescência e juventude, porque aí vivi
entre 1945 e 1969 em casa de meus pais ao cimo da rua da Alegria, e de seguida
um pouco mais a sul no empreendimento do Luso entre 1969 e 1977, esta foi durante
muitos anos a minha paisagem quotidiana e ficou fazendo parte dos lugares da
minha memória.
Assim,
não posso referir o estádio do Lima e o Académico, sem lembrar o troço final da
rua da Alegria com a fábrica de Mattos & Quintans, o campo do Luso, o
empreendimento da Santa Casa da Misericórdia, e o Lima 5.
Em
1924, há cem anos, embora não saiba a data, o Académico Foot-Ball Club
inaugurava o Estádio do Lima.
Em
O Comercio do Porto de Quarta feira 13 de Agosto de 1924, a propósito “dos novos corpos gerentes da importante agremiação que é o Académico
Foot-Ball Club”, refere que entre
as várias iniciativas a que estão vinculados “avulta a construção do seu magnifico campo do Lima. E conclui O
Comércio do Porto: os novos dirigentes “com
os elementos que agora conta, estamos certos de que levará a bom termo essa
gigantesca obra”
A
“gigantesca obra” será um estádio
completo com um campo de futebol, pista de atletismo em cinza, e uma pista em
cimento de ciclismo (depois também utilizada para provas de automobilismo).
fig. 1 – O Estádio do Lima quando completo. Foto. J. Portojo.
O sítio. A Quinta da Alegria
O Estádio do Lima e a rua com o mesmo nome, homenageiam o
empresário João António Lima (18??-1890), que emigrado
no Brasil fez fortuna e aí conheceu a brasileira Luzia Joaquina Bruce (18??-1917)
com que passou a viver numa duradoura união, já que não podiam contrair
matrimónio porque João António Lima fora casado.
Regressaram do Brasil e instalaram-se no Porto num palacete na rua de Costa
Cabral, junto ao qual fundou a fábrica de tabaco “A Lealdade”.
Na planta de Telles Ferreira de 1892 está aberta a rua do Lima e
cartografada a propriedade de João António Lima, com a Casa e a Fábrica na rua
de Costa Cabral.
fig. 3 – A propriedade de João António Lima na Planta
Cartográfica de Telles Ferreira à escala 1:500
Com a morte do empresário em 1890, Luzia Joaquina Bruce ficou a administrar
os bens do casal dedicando boa parte da fortuna a ações de benemerência.
fig. 4 - Acácio Lino (1878-1956), Retrato de Luzia Joaquina
Bruce 1933óleo s/tela Santa Casa da Misericórdia do Porto.
Entre as suas obras de benemerência destaque-se o Hospital da Lapa (inaugurado
em 1904), onde foi colocada a estátua de João António Lima da autoria do
escultor António Alves Pinto.
fig. 5 – António Alves Pinto. Estátua
de João António Lima encimando o frontão do Hospital da Irmandade de N.ª Sr.ª
da Lapa. CMP.
A Praça
de Touros da Alegria 1901/1911
No início do século XX, a
rua da Alegria ainda terminava na rua do Lima, junto à qual foi construída uma praça de touros
De
facto, em 1 de Outubro de 1901,
Álvaro de Almeida Pinto requer à CMP “a
construção em madeira de uma Praça de Touros nos terrenos situados no extremo
da rua da Alegria, conforme vai indicado no desenho junto.”
O
projecto é do engenheiro Casimiro Jerónimo de Faria (?-?) professor da Faculdade
de Engenharia, e que foi o autor entre outros, do projecto da Praça de Touros
de Espinho (1906) e do Hospital Rodrigues Semide (1910 interrompido pela Grande
Guerra e concluído em 1926.
Demolido
em 1970)
fig. 6 – Casimiro Jerónimo de Faria, projecto da Praça de Touros da Alegria. 1901.
AHMP.
fig. 7 - Casimiro Jerónimo de Faria, alçado exterior
para a rua da Alegria. Pormenor do projecto de 1901.AHMP.
A praça foi inaugurada no Domingo 4 de Maio de 1902.
fig. 8 - Postal ed. Le Temps Perdu. Praça de
Touros da rua da Alegria 1909. AHMP.
Escreve
O Primeiro de Janeiro na Terça Feira 6 de Maio 1902:
“A inauguração da praça de touros do
Porto, ao alto da rua da Alegria, excedeu todas as espectativas, por mais que
toda a afiction muito e muito esperasse de corrida tão superiormente organizada
– com touros de Carlos Marques, Fernando de Oliveira e João Marcellino a lidar
a cavalo, Quinito, cadete e os outros na lide de pé. Os logares destinados ao
público encheram-se completamente, retirando-se enumeras pessoas por falta de
bilhetes, em que, todavia, os contactadores ganharam bons prémios. E em redor
da praça conservou-se até ao fim da corrida uma multidão que daria, por certo,
para mais duas enchentes. O “melhor Porto” assentou-se nos camarotes, nos
fauteuils do touril, nas barreiras, na “sombra”. A burguezia pacata e mediana
encheu a galeria, que é um logar magnífico.
O Povo, o bom povo entusiasta e festivo,
aglomerou-se. Apinhou-se, ruidoso e premido no “sol”. A corrida esteve magnífica
(…).”
[In No
Tempo das Touradas – Da esplêndida corrida a tradição repudiada – Coord. Manuel
Luís Real e Maria Helena Gil Braga. AHMP Porto Setembro 2002]
fig. 9 - Postal Porto. Tourada à antiga Portugueza: Carro dos Cavalleiros. Depois de 1905. Estrela Vermelha. Biblioteca Pública Municipal do Porto.
fig. 10 – Planta do Porto c.1907 no Guia do Porto Illustrado. Desenhos e
Direcção Literaria de Carlos Magalhães. Edição da Empreza dos Guias Touriste,
rua de Passos Manoel, Porto 1910
Voltando ao estádio do Lima e ao Académico, Luzia Bruce doou, à Santa Casa
da Misericórdia do Porto, entre outros, os terrenos da Quinta do Lima.
fig. 11 - Teófilo Rêgo (1914- 1993). O Palacete da rua de
Costa Cabral e o Académico F. C. 1961. AHMP.
Aberto o troço da
rua da Alegria até à rua de Costa Cabral será nos anos 20 e 30 do século XX
edificado.
Numa
imagem de 1951, em que se vê uma prova de automobilismo na pista do Lima, do lado
nascente na rua da Alegria, surge a fábrica de fiação e tecidos “Mattos &
Quintans Lda.”.
fig. 12 – O Estádio do Lima tendo ao fundo a Fábrica
Mattos & Quintans. Foto anos 50.
A
Fábrica, criada em 1899 por Miguel Mattos de Almeida e José Augusto Quintans, em
17 de Março de 1903, requerem à Câmara Municipal do Porto “construir no seu terreno da rua d’Alegria um edifício para a
instalação da sua fábrica conforme o projecto e memorias discriptivas juntas”
Assina
o projecto o arquitecto Estevão Eduardo Augusto de Parada e Silva Leitão
(1844-1907), (conhecido autor do prédio Arte Nova da rua Galeria de Paris n.º
26 a 34).
fig. 13
Com o
incêndio de uma parte da Fábrica, em 1938 “A
firma Matos & Quintans Limida da rua da Alegria nº 1924,
desejando que lhe seja concedida licença para reconstruir o edifício destruído
ultimamente por incêndio, e que é destinado a escritórios, como era
anteriormente, de harmonia com a planta topográfica e projecto junto. Assim o
requer.”
O novo
projecto é assinado pelo arquitecto Aucíndio Ferreira dos Santos (18??-1961) e pelo engenheiro António Alla.
fig. 14 - Aucíndio dos Santos, Projecto de reconstrução
da Firma Matos & Quintans Lda. Fachada Principal. 1938. AHMP
No
remate do edifício, foi colocada uma escultura requerida à CMP em 17 de Agosto
de 1939.
Assim a
firma Mattos & Quintans requer da CMP que “desejando colocar na parte superior da platibanda do edifício que tem
em construção, uma figura que á muitos anos é adotada nas etiquetas da
industria de tecidos da fábrica dos requerentes, conforme vai indicado a camim
no desenho”.
O novo
edifício foi licenciado em 1939 e a sua construção concluída em 1940.
O Campo do Luso
Junto da
Matos & Quintans, a sul, situava-se um outro campo de jogos, o campo do
Luso, propriedade do Luso Atlético Clube.
Foi
criado no seguimento da junção de duas agremiações chamadas Sport Clube
Nacional, fundado em 1914 e especialmente dedicado a desportos náuticos, e o
Portugal Foot Ball Club fundado em 1923.
Na planta dos
finais de 40 para o plano Regulador de Antão Almeida Garrett vemos o recinto do
Académico FC com as suas instalações incluindo o estádio do Lima
A ponteado a rua da
Constituição prolongada para nascente (rua Carlos Malheiro Dias).
A rua da Alegria
prolongada até à rua de Costa Cabral e à Avenida dos Combatentes da Grande Guerra.
fig. 15
No
Campo do Luso foi construído um empreendimento da Santa Casa da Misericórdia
(1960/68) segundo um projecto do arquitecto José Carlos Loureiro (1925-2022) e
Luís Pádua Ramos (1931-2005).
fig. 16 – J.C. Loureiro, Perspectiva do projecto para a S. Casa
da Misericórdia do Porto.
J. Carlos Loureiro vai introduzir um conjunto de inovações na
urbanização que projectou para o Campo do Luso (1961/ 70). Estas inovações
assumem particular importância na cidade do Porto, quando na década de 60, os
conteúdos político-sociais do Movimento Moderno e da Carta de Atenas, que
correspondiam a símbolos claros de afirmação social, politicamente empenhada e
esteticamente avançada, começam a sofrer uma progressiva perda de significado. Apropriados
por uma arquitectura consumista e especulativa, assistiu-se à banalização e
adulteração dos seus princípios teóricos, funcionais e tecnológicos e, soluções
como as baterias de blocos, os acessos em galeria e as coberturas em terraço, o
uso do betão aparente e das caixilharias metálicas, e no interior dos edifícios
a redução das áreas, a sala-comum e a cozinha-laboratório, tornaram-se de uso
corrente, numa banalização que no Porto, não é alheia a construção dos Bairros
Camarários do Plano de Melhoramentos (1956/66) então lançado.
fig. 17 – Teófilo Rêgo, Conjunto habitacional do Luso-Lima, 1963.
In Porto Desaparecido https://www.facebook.com/PortoDesaparecido.
É neste contexto que se insere o projecto de J. Carlos
Loureiro, que na sua implantação, de novo contrariando e criticando a
tradicional proposta camarária de edifício-ao-longo-da-rua,
cria - aproveitando o espaço intercalar entre o conjunto de dois blocos e duas
torres de habitação [i]
- uma inovadora e ampla praceta, articulando a solução num, “vasto espaço no qual os moradores
dialogassem entre si, com as árvores, com a luz e o sol que elas filtram e onde
as crianças possam brincar.”
Esta praceta, rebaixada, mas aberta para a rua, e onde a nascente se
abre uma galeria, foi arborizada conferindo ao conjunto um ambiente de uma
"unidade de vizinhança", aproximando-se de soluções então postas em
prática nos países nórdicos.
Nos
anos 70 era conhecido como a “ilha dos arquitectos” já que aí habitavam o Álvaro
Siza, o Alcino Soutinho, o Júlio Anciães, o Duílio, o Manuel Teles, o Augusto
Amaral e a Annie Günther, o José Gomes Fernandes, o Mário Trindade, o Gonçalo
Canto Moniz, o António Moura
Para
além dos que aí tinham o seu escritório como os autores do projecto J. C.
Loureiro e Pádua Ramos, o Augusto Amaral e a Annie Günther, e o José Gomes
Fernandes no r/c do prédio A.
[i] Com uma experimental recuperação do uso do azulejo como
revestimento exterior dos edifícios, no seguimento dos estudos então efectuados
pelo arquitecto, para a sua Dissertação no Concurso para professor da Esbap. De
1961.
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