segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Imagens da cidade do Porto há cem anos 6

 

A propósito dos 100 anos do estádio do Lima

Porque foi o território da minha infância, adolescência e juventude, porque aí vivi entre 1945 e 1969 em casa de meus pais ao cimo da rua da Alegria, e de seguida um pouco mais a sul no empreendimento do Luso entre 1969 e 1977, esta foi durante muitos anos a minha paisagem quotidiana e ficou fazendo parte dos lugares da minha memória.

Assim, não posso referir o estádio do Lima e o Académico, sem lembrar o troço final da rua da Alegria com a fábrica de Mattos & Quintans, o campo do Luso, o empreendimento da Santa Casa da Misericórdia, e o Lima 5.

Em 1924, há cem anos, embora não saiba a data, o Académico Foot-Ball Club inaugurava o Estádio do Lima.

Em O Comercio do Porto de Quarta feira 13 de Agosto de 1924, a propósito “dos novos corpos gerentes da importante agremiação que é o Académico Foot-Ball Club”, refere que entre as várias iniciativas a que estão vinculados “avulta a construção do seu magnifico campo do Lima. E conclui O Comércio do Porto: os novos dirigentes “com os elementos que agora conta, estamos certos de que levará a bom termo essa gigantesca obra”

A “gigantesca obra” será um estádio completo com um campo de futebol, pista de atletismo em cinza, e uma pista em cimento de ciclismo (depois também utilizada para provas de automobilismo).


 

fig. 1 – O Estádio do Lima quando completo. Foto.  J. Portojo.

 

O sítio. A Quinta da Alegria

O Estádio do Lima e a rua com o mesmo nome, homenageiam o empresário João António Lima (18??-1890), que emigrado no Brasil fez fortuna e aí conheceu a brasileira Luzia Joaquina Bruce (18??-1917) com que passou a viver numa duradoura união, já que não podiam contrair matrimónio porque João António Lima fora casado.

Regressaram do Brasil e instalaram-se no Porto num palacete na rua de Costa Cabral, junto ao qual fundou a fábrica de tabaco “A Lealdade”. 

Na planta de Telles Ferreira de 1892 está aberta a rua do Lima e cartografada a propriedade de João António Lima, com a Casa e a Fábrica na rua de Costa Cabral.

 




fig. 2 – A propriedade de João António Lima. Detalhe da Planta de Telles Ferreira 1892 escala 1:5000

 

 

fig. 3 – A propriedade de João António Lima na Planta Cartográfica de Telles Ferreira à escala 1:500

 

Com a morte do empresário em 1890, Luzia Joaquina Bruce ficou a administrar os bens do casal dedicando boa parte da fortuna a ações de benemerência.



fig. 4 - Acácio Lino (1878-1956), Retrato de Luzia Joaquina Bruce 1933óleo s/tela Santa Casa da Misericórdia do Porto.

 

Entre as suas obras de benemerência destaque-se o Hospital da Lapa (inaugurado em 1904), onde foi colocada a estátua de João António Lima da autoria do escultor António Alves Pinto.

 


fig. 5António Alves Pinto. Estátua de João António Lima encimando o frontão do Hospital da Irmandade de N.ª Sr.ª da Lapa. CMP.

 

 

A Praça de Touros da Alegria 1901/1911

No início do século XX, a rua da Alegria ainda terminava na rua do Lima, junto à qual foi construída uma praça de touros

De facto, em 1 de Outubro de 1901, Álvaro de Almeida Pinto requer à CMP “a construção em madeira de uma Praça de Touros nos terrenos situados no extremo da rua da Alegria, conforme vai indicado no desenho junto.”

O projecto é do engenheiro Casimiro Jerónimo de Faria (?-?) professor da Faculdade de Engenharia, e que foi o autor entre outros, do projecto da Praça de Touros de Espinho (1906) e do Hospital Rodrigues Semide (1910 interrompido pela Grande Guerra e concluído em 1926.

Demolido em 1970)



fig. 6 – Casimiro Jerónimo de Faria, projecto da Praça de Touros da Alegria. 1901. AHMP.

 



fig. 7 - Casimiro Jerónimo de Faria, alçado exterior para a rua da Alegria. Pormenor do projecto de 1901.AHMP.

 

 

A praça foi inaugurada no Domingo 4 de Maio de 1902.



fig. 8 - Postal ed. Le Temps Perdu. Praça de Touros da rua da Alegria 1909. AHMP.

 

Escreve O Primeiro de Janeiro na Terça Feira 6 de Maio 1902:

“A inauguração da praça de touros do Porto, ao alto da rua da Alegria, excedeu todas as espectativas, por mais que toda a afiction muito e muito esperasse de corrida tão superiormente organizada – com touros de Carlos Marques, Fernando de Oliveira e João Marcellino a lidar a cavalo, Quinito, cadete e os outros na lide de pé. Os logares destinados ao público encheram-se completamente, retirando-se enumeras pessoas por falta de bilhetes, em que, todavia, os contactadores ganharam bons prémios. E em redor da praça conservou-se até ao fim da corrida uma multidão que daria, por certo, para mais duas enchentes. O “melhor Porto” assentou-se nos camarotes, nos fauteuils do touril, nas barreiras, na “sombra”. A burguezia pacata e mediana encheu a galeria, que é um logar magnífico.

O Povo, o bom povo entusiasta e festivo, aglomerou-se. Apinhou-se, ruidoso e premido no “sol”. A corrida esteve magnífica (…).”

[In No Tempo das Touradas – Da esplêndida corrida a tradição repudiada – Coord. Manuel Luís Real e Maria Helena Gil Braga. AHMP Porto Setembro 2002]

 

 




fig. 9 - Postal Porto. Tourada à antiga Portugueza: Carro dos Cavalleiros. Depois de 1905. Estrela Vermelha. Biblioteca Pública Municipal do Porto.








fig. 10 – Planta do Porto c.1907 no Guia do Porto Illustrado. Desenhos e Direcção Literaria de Carlos Magalhães. Edição da Empreza dos Guias Touriste, rua de Passos Manoel, Porto 1910

 

 

Voltando ao estádio do Lima e ao Académico, Luzia Bruce doou, à Santa Casa da Misericórdia do Porto, entre outros, os terrenos da Quinta do Lima.

 O terreno, foi arrendado em 1923 ao Académico Foot Ball-Club fundado por um grupo de estudantes em 1911 e que aí instalará a sua sede e onde irá construir o seu estádio.

 Durante anos este foi o aspecto da Fábrica e da Casa e a entrada do Académico na rua Costa Cabral.



fig. 11 - Teófilo Rêgo (1914- 1993). O Palacete da rua de Costa Cabral e o Académico F. C. 1961. AHMP.

 

 

Aberto o troço da rua da Alegria até à rua de Costa Cabral será nos anos 20 e 30 do século XX edificado.

Numa imagem de 1951, em que se vê uma prova de automobilismo na pista do Lima, do lado nascente na rua da Alegria, surge a fábrica de fiação e tecidos “Mattos & Quintans Lda.”.





fig. 12 – O Estádio do Lima tendo ao fundo a Fábrica Mattos & Quintans. Foto anos 50.

 

A Fábrica, criada em 1899 por Miguel Mattos de Almeida e José Augusto Quintans, em 17 de Março de 1903, requerem à Câmara Municipal do Porto “construir no seu terreno da rua d’Alegria um edifício para a instalação da sua fábrica conforme o projecto e memorias discriptivas juntas”

Assina o projecto o arquitecto Estevão Eduardo Augusto de Parada e Silva Leitão (1844-1907), (conhecido autor do prédio Arte Nova da rua Galeria de Paris n.º 26 a 34).

 

 


fig. 13  – A Fábrica tendo assinalada a parte a reconstruir. Fotografia do processo de 1938 AHMP

 

Com o incêndio de uma parte da Fábrica, em 1938 “A firma Matos & Quintans Limida da rua da Alegria nº 1924, desejando que lhe seja concedida licença para reconstruir o edifício destruído ultimamente por incêndio, e que é destinado a escritórios, como era anteriormente, de harmonia com a planta topográfica e projecto junto. Assim o requer.”

O novo projecto é assinado pelo arquitecto Aucíndio Ferreira dos Santos (18??-1961) e pelo engenheiro António Alla.





fig. 14 - Aucíndio dos Santos, Projecto de reconstrução da Firma Matos & Quintans Lda. Fachada Principal. 1938. AHMP

 

No remate do edifício, foi colocada uma escultura requerida à CMP em 17 de Agosto de 1939.

Assim a firma Mattos & Quintans requer da CMP que “desejando colocar na parte superior da platibanda do edifício que tem em construção, uma figura que á muitos anos é adotada nas etiquetas da industria de tecidos da fábrica dos requerentes, conforme vai indicado a camim no desenho”.

 

O novo edifício foi licenciado em 1939 e a sua construção concluída em 1940.

 

O Campo do Luso

 

Junto da Matos & Quintans, a sul, situava-se um outro campo de jogos, o campo do Luso, propriedade do Luso Atlético Clube.

Foi criado no seguimento da junção de duas agremiações chamadas Sport Clube Nacional, fundado em 1914 e especialmente dedicado a desportos náuticos, e o Portugal Foot Ball Club fundado em 1923.

 

 

Na planta dos finais de 40 para o plano Regulador de Antão Almeida Garrett vemos o recinto do Académico FC com as suas instalações incluindo o estádio do Lima

A ponteado a rua da Constituição prolongada para nascente (rua Carlos Malheiro Dias).

A rua da Alegria prolongada até à rua de Costa Cabral e à Avenida dos Combatentes da Grande Guerra.




fig. 15  - planta de 1950 (a vermelho o edificado).

 

 

No Campo do Luso foi construído um empreendimento da Santa Casa da Misericórdia (1960/68) segundo um projecto do arquitecto José Carlos Loureiro (1925-2022) e Luís Pádua Ramos (1931-2005).






fig. 16 – J.C. Loureiro, Perspectiva do projecto para a S. Casa da Misericórdia do Porto.


J. Carlos Loureiro vai introduzir um conjunto de inovações na urbanização que projectou para o Campo do Luso (1961/ 70). Estas inovações assumem particular importância na cidade do Porto, quando na década de 60, os conteúdos político-sociais do Movimento Moderno e da Carta de Atenas, que correspondiam a símbolos claros de afirmação social, politicamente empenhada e esteticamente avançada, começam a sofrer uma progressiva perda de significado. Apropriados por uma arquitectura consumista e especulativa, assistiu-se à banalização e adulteração dos seus princípios teóricos, funcionais e tecnológicos e, soluções como as baterias de blocos, os acessos em galeria e as coberturas em terraço, o uso do betão aparente e das caixilharias metálicas, e no interior dos edifícios a redução das áreas, a sala-comum e a cozinha-laboratório, tornaram-se de uso corrente, numa banalização que no Porto, não é alheia a construção dos Bairros Camarários do Plano de Melhoramentos (1956/66) então lançado.







fig. 17 – Teófilo Rêgo, Conjunto habitacional do Luso-Lima, 1963. In Porto Desaparecido https://www.facebook.com/PortoDesaparecido.

 

É neste contexto que se insere o projecto de J. Carlos Loureiro, que na sua implantação, de novo contrariando e criticando a tradicional proposta camarária de edifício-ao-longo-da-rua, cria - aproveitando o espaço intercalar entre o conjunto de dois blocos e duas torres de habitação [i] - uma inovadora e ampla praceta, articulando a solução num, “vasto espaço no qual os moradores dialogassem entre si, com as árvores, com a luz e o sol que elas filtram e onde as crianças possam brincar.”

Esta praceta, rebaixada, mas aberta para a rua, e onde a nascente se abre uma galeria, foi arborizada conferindo ao conjunto um ambiente de uma "unidade de vizinhança", aproximando-se de soluções então postas em prática nos países nórdicos.

 

 

Nos anos 70 era conhecido como a “ilha dos arquitectos” já que aí habitavam o Álvaro Siza, o Alcino Soutinho, o Júlio Anciães, o Duílio, o Manuel Teles, o Augusto Amaral e a Annie Günther, o José Gomes Fernandes, o Mário Trindade, o Gonçalo Canto Moniz, o António Moura

 

Para além dos que aí tinham o seu escritório como os autores do projecto J. C. Loureiro e Pádua Ramos, o Augusto Amaral e a Annie Günther, e o José Gomes Fernandes no r/c do prédio A.

 



[i] Com uma experimental recuperação do uso do azulejo como revestimento exterior dos edifícios, no seguimento dos estudos então efectuados pelo arquitecto, para a sua Dissertação no Concurso para professor da Esbap. De 1961.

Sem comentários:

Enviar um comentário