sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Aspectos do Porto na segunda década de oitocentos 3

 

3º episódio

 A chegada ao Porto por via marítima

Voltando a imaginar o percurso de Manoel Fernandes Thomaz quando se deslocou de Coimbra para o Porto, se o tivesse feito por via marítima [1] - apesar de tudo uma viagem mais rápida e mais segura – teria certamente embarcado na Figueira da Foz.

E se foi com uma imagem da cidade do Porto de 1817, de Henri L’Éveque, que abrimos o 1º episódio, é com uma imagem da foz do Mondego, também de L’Éveque, que iniciamos o possível percurso, pela via marítima, de Manoel Fernandes Thomaz.

A imagem do 1º episódio

 


fig. 1 - Henri L’Eveque (1769-1832), Vue de Ia Ville et du Port de Porto. H. L’Evêque. d. London P.ed 1817.

A imagem do 3º episódio

 

fig. 2 - Henry L’Éveque, “The landing of the British Army at Mondego Bay”, engraved by J. Vendramini, in Campaigns of the British Army in Portugal, under the command of general the Earl of Wellington, K. B., Commander in Chief, &c. &c, London, printed by W. Bulmer and Co. Cleveland-Row, 1812.

 

A gravura, publicada em 1812, representa e reconstrói o desembarque das tropas inglesas na foz do Mondego entre a Sexta-feira dia 2 e a Segunda-feira dia 5, em Agosto de 1808.

Para Manoel Fernandes Thomaz “Quando as tropas britannicas desembarcaram na Figueira, foi tal a sua alegria, que imediatamente se apresentou a Wellington oferecendo-lhe os seus serviços em prol da pátria”. [2]

 


[1] Necessariamente num veleiro já que o vapor apenas iniciou a sua actividade em 1821 com o navio Lusitânea da empresa João Baptista Ângelo da Costa & C.a, mas essa carreira foi suspensa após um naufrágio em 1823 junto a Ericeira. Apenas foi retomada em 1825.

[2] José de Arriaga (1844-1921), História da Revolução Portugueza de 1820.Livro III A Revolução cap. I Fernandes Thomaz. Livraria Portuense Lopes & C.ª – Editores, Rua do Almada 119 a 123. Porto 1886. (pág. 638).


A gravura de Henry L’Évêque

“Plus le port est petit, plus la mer est grande.” [1]

Victor Hugo

[ Quanto mais pequeno é o porto, maior é o mar.]

  

A gravura mostra uma panorâmica do porto da Figueira da Foz, (elevada a Vila em 1771, curiosamente no ano de nascimento de Manoel Fernandes Thomaz), vista de Lavos na margem sul do Mondego.

 


fig. 3 - Henry L’Éveque, “The landing of the British Army at Mondego Bay”, engraved by J. Vendramini, in Campaigns of the British Army in Portugal, under the command of general the Earl of Wellington, K. B., Commander in Chief, &c. &c, London, printed by W. Bulmer and Co. Cleveland-Row, 1812.

 

E apesar de ser Verão é ao cair da tarde, sob um céu carregado de estridentes nuvens cor de cinza, que l’Évêque representa esta cena, apenas iluminada por uma fraca e azulada luz de poente.

Ao fundo, encostados ao quieto horizonte, os navios ingleses. Em frente o Forte de Santa Catarina, reconquistado aos franceses entre 25 e 27 de Julho por um punhado de figueirenses.

Ao longe a histórica povoação de Buarcos.

 


fig. 4 - A Vila da Figueira da Foz. Pormenor da gravura de l’Évêque.

 

Em destaque na vista da Figueira da Foz a Casa do Paço, mandada construir por João de Melo, bispo das dioceses de Coimbra, Elvas e Viseu, adornada pela valiosa coleção de azulejos holandeses do século XVII. [2]

 


fig. 5 - A Casa do Paço Pormenor da gravura de L’Évêque.



[1] Victor Hugo (1802-1885), Corseulles 7 julliet 1836. In En Voyage France et Belgique. Alpes et Pyrenées. Librarie Nationale. Ed. Librairie Ollendorff. Paris MDCCCCX (pág. 67)..

[2] Ver Inês Maria Jordão Pinto, “Azulejos Holandeses na Casa do Paço, Figueira da Foz”. Dissertação de Mestrado em História da Arte, Património e Turismo Cultural, na área de especialização de História da Arte, orientada pelo Doutor José Manuel Alves Tedim e coorientada pelo Doutor Nuno Senos, apresentada ao Departamento de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2013.


Na margem as tropas inglesas vão desembarcando transportadas em barcos de pescadores e em escaleres.

 


fig. 6 - Pormenor da gravura de L’Évêque.

 

De notar navegando no Mondego, a presença de uma embarcação com espadela como um rabão, um barco típico do Douro.

Como não parece provável que um rabão navegasse na foz do Mondego, terá sido o autor que, como era habitual neste tipo de imagem, tenha realizado uma composição a partir de apontamentos avulsos ou de memória de embarcações de outras paragens. 

fig. 7 – O rabão. Pormenor da gravura de L’Évêque.

 

Junto à margem, uma catraia da Foz do Mondego, de onde atarefados soldados com a ajuda de civis, vão descarregando arcas e mantimentos, para um carro de bois e para os equídeos: cavalos, uma mula e um burro.

 


fig. 8 - Pormenor da gravura de L’Évêque.

  

O carro de bois é semelhante ao publicado por L’Évêque em 1812, na estampa do Mosteiro da Batalha 1812, e em 1814 no seu álbum Costume of Portugal. (ver 1º episódio).

Este carro de bois da região de Coimbra, é identificado por Vergílio Correia [1] descrevendo o rodado da seguinte forma:

“A roda consta de meão '(meom na pronuncia local), de cambas, fortalecidas, internamente, por sub-rélhas, visíveis em parte nos angulos das aberturas e, exteriormente, por rélhas de ferro fortemente pregadas. O cubo do eixo tem o nome de olhal e as quatro cunhas que o entalam na abertura do meão, o de musgas. Gatos de ferro abraçam e robustecem a parte central da roda. O aro de ferro do rodado recebe o nome de chapa, e chama-se remã ao arco de ferro que fortalece a parte do eixo entre o moente e o meão.” [2]


 fig. 9 -  Pormenor de Henri L'Évêque (1769-1832), Mosteiro da Batalha 1812, água-forte p&b 43 x 53 cm. Colnaghi Biblioteca Nacional Digital Lisboa.

[1] Vergílio Correia Pinto da Fonseca (1888-1944), licenciado em Direito (19119 e em Letras (1935) na Universidade de Coimbra onde lecionou. Foi conservador do Museu Etnológico Português em 1912, e do Museu Nacional de Arte Antiga (1915)  e director do Museu Machado de Castro (1929-1944).

[2] Vergílio Correia, O Carro Rural Português in Terra Portuguesa Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia. N.os 29-30 Dezembro de 1918 e Janeiro de 1919. Na Oficina do Anuario Comercial, Praça dos Restauradores, 24. Lisboa MCMXVIII. (pág.91).


 Por entre os soldados algumas figuras femininas.

 


fig. 10 - Pormenor da gravura de L’Évêque.

 

Uma sorridente mãe tem sentada no colo uma criança que com um vago aceno parece feliz pelo desembarque dos militares.

Junto a ela, no meio dos soldados, caminha uma lavadeira com um cesto de roupa na cabeça.

 


fig. 11 – A figura sentada com a criança. Pormenor da gravura de L’Évêque.


Uma camponesa junto do carro de bois.

 

fig. 12- A camponesa junto do carro de bois. Pormenor da gravura de L’Évêque.

 

 Do lado direito da gravura uma outra figura, sentada na sombra, parece dialogar com um rapazinho de azul.

 


fig. 13 - Pormenor da gravura de L’Évêque.


O brigue

À direita da imagem está ancorado um silencioso brigue, o velame enrolado em curtas dobras.

 

 

 


fig. 14 - Pormenor da gravura de L’Évêque.

 

A bordo, entre os dois mastros, parece estar erecta uma estátua (uma alegoria a Santa Catarina? padroeira dos mareantes [1] e nome dado ao forte na barra do Mondego. Ou Atenas? ou Minerva? pela proximidade de Coimbra, conhecida como a Lusa Atenas, com a sua Universidade).

A bordo, na popa do navio e junto à roda do leme, dois tripulantes (o comandante e o piloto?), observam a barra e a povoação.

 


fig. 15 - Pormenor da gravura de L’Évêque.


Por trás deste navio, outras embarcações não identificáveis. 

Entre outras embarcações de média dimensão, era em brigues que se efectuava o trajecto entre Lisboa e Porto, por via marítima, com escala na Figueira da Foz, até ao aparecimento em 1821 do navio a vapor. 

Numa pintura de Robert Salmon podemos ver dois brigues quando se deslocavam com as velas enfunadas.

 


fig. 16 - Robert Salmon (1775c.1845), A departing brig off Maryport Harbor, s/d, óleo s/tela 78,7 x 114,3 cm. Col. particular.

 

Numa pintura de João Pedroso o brigue Pedro Nunes construído em Portugal e lançado à água em 1856 e cujo 1º comandante foi o então príncipe D. Luís.

 


fig. 17João Gomes da Silva Pedroso (1825-1890), Brigue Pedro Nunes 1857 Óleo sobre tela, 
59 x 89 cm. Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa.

 


[1] Santa Catarina é representada com uma roda de lâminas com que sofreu o martírio. Pela semelhança com a roda do leme dos navios tornou-se padroeira dos mareantes. Essa semelhança também a tornou a santa invocada por todos os que trabalham com rodas como as costureiras e rendeiras.

 

A Barra da Figueira

“Adeus barra da Figueira,

Tam larga como comprida:

Tam alegre és na entrada

E tam triste na saida!” [1]

 

 

Para ter uma ideia da barra do Mondego no século XVIII um mapa de autor desconhecido.

 


 

fig. 18 - Autor desconhecido. "Mappa da Barra da Figueira e outras terras circunvezinhas", c. 1800, desenho a tinta ferrogálica; 74 x 96 cm. em f. 78 x 99,5 cm. Biblioteca Nacional do Brasil in: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart514095/cart514095.jpg.

 



[1] Pedro Fernandes Thomás (1853 — 1927), Senhor Alexandre in Cantares do Povo (Poesia e Música). Prefaciado por Anonio Arroyo. F. França Amado – Editor. Coimbra 1919. (pág.85).


 

Buarcos  

“Adeus villa de Buarcos,

Adeus moinhos de vento;

Já vos passei pela proa,

Já vos deixo a barlavento.” [1]

 

Observe-se a vila de Buarcos com uma muralha, e a sua relação com a vila da Figueira protegida pelo forte de Santa Catarina.

O padre Luiz Cardoso (1694?-1769), no Diccionário Geografico, assim descreve Buarcos, quando em meados do século XVIII era ainda a povoação e o porto mais importante da foz do Mondego. 

Buarcos - “Está situada na raiz de hum pequeno monte, perto do mar, que a cercada parte debaixo por onde he murada: della se descobre o forte de S. Catharina, na borda do dilatadíssimo Oceano.”

E refere ainda que “No seu destricto fica a Alfandega no Lugar da Figueira da Fós, que se intitula Alfandega de Buarcos, distante desta Villa hum quarto de legoa.” [2]


 

fig. 19 - Pormenor da imagem anterior.

 



[1] Pedro Fernandes Thomás (1853 — 1927), Senhor Alexandre in Cantares do Povo (Poesia e Música). Prefaciado por Anonio Arroyo. F. França Amado – Editor. Coimbra 1919. (pág.86).

[2] P. Luiz Cardoso, Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de todas as Cidades, Villas, Lugares e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelle se encontraõ, assim antigas, como modrnas, que escreve e oferece, À Saudosa Memoria e Eterna Saudade do Senhor Rey D. Joaõ V. XXIV. Rey de Portugal. O P. Luiz Cardoso. Tomo II. Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real. Lisboa M.DCC.LI.  



 

Os moinhos

Lento moinho de vento
Feito de espaço e de tempo...”

Pedro Homem de Mello

Numa colina próxima de Buarcos, junto de uma capela, os moinhos de vento de que fala a quadra popular.


fig. 20 – Os moinhos. Pormenor da fig.18.

 

E como não evocar Cervantes e o diálogo entre o sonho e as ilusões e a realidade e a vida, entre Dom Quixote, e o Sancho Pança.

“Mire vuestra merced, respondió Sancho, que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas, que volteadas del viento hacen andar la piedra del molino.”  [1]

[Olhe vossa mercê, que aqueles ali não são gigantes, mas moinhos de vento, e aquilo que pensais serem braços são as pás que, girando pelo vento, fazem rodar a pedra do moinho.]

 

As personagens que no poema - significativamente intitulado Impressão Digital -  de António Gedeão, o qual, fazendo o elogio da diferença e da liberdade de escolha e de opinião, escreve:

 

“…Cada um é seus caminhos.

Onde Sancho vê moinhos

D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.

Vê gigantes? São gigantes.” [2]



[1] Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), Capítulo VIII Del buen suceso que el valeroso don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos dignos de felice recordación. In El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha por Miguel de Cervantes Saavedra. Edición adornada com más de 350 acuarelas de Salvador Tusell sacadas de las célebres composicones de Gustavo Doré. Tomo I Casa Editorial VDA. De Luis Tasso Arco del Teatro, nus. 21 y 23. Barcelona 1905. (pág. 52).

Salvador Tusell Garner (entre 1800 e1900); Gustave Doré (1832-1883).

[2] António Gedeão psd. De Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (1906-1997), Impressão digital (1955) de Movimento Perpétuo (1956) Coimbra of. Atlãntica in António Gedeão. Obra Completa. Relógio D'Água, Lisboa 2004. (pág.92).


Lavos

Na margem sul a povoação de Lavos onde desembarcaram as tropas inglesas.

 


fig. 21 - Pormenor da fig.18.

  

José Leite de Vasconcellos referia, em 1915, os palheiros e Lavos da seguinte forma:

“A Cova de Lavos é uma povoação vizinha da Figueira da Foz, mas separada d'esta cidade pelo Mondego: não há lá outro chão senão areias; o viajante não verá ahi hortas nem arvores; em compensação verá o que não tornará a ver facilmente noutras regiões do país: uma aldeia com as casas, todas de madeira, erguidas no ar, sobre espeques, também de madeira, enterrados na areia. (…) As casas da Cova chamam-se, ou chamaram-se, palheiros, e ainda em Buarcos ha uma praia com tal denominação.” [1] 

 


fig. 22  - Lavos. Pormenor da fig.18.

 


[1]  José Leite de Vasconcellos, História do Museu Etnológico Português (1893-1914), Imprensa Nacional Lisboa 1915 (pág. 57).


A viagem de Coimbra ao Porto por via marítima


Para ter uma noção do percurso marítimo entre a Figueira e o Porto socorremo-nos de um mapa da Península Ibérica realizado por Giovanni Antonio Bartolomeo Rizzi Zannoni (1736-1814), em 1780, onde está assinalado a ponteado, o percurso marítimo entre a Figueira na Foz do Mondego e a Foz do Douro no Porto. De notar que estas cartas eram realizadas a partir de outras anteriores e por isso nas datas da sua publicação já haveria modificações no território que ainda não estão cartografadas.

 


fig. 23 - Giovanni Antonio Bartolomeo Rizzi Zannoni, Carte des Royaumes de Portugal et D’Algarve dressée sur les Mémoires Topographiques de D. vasquez de Cozuela, sur celle de P. Lacerda et plusieurs autres Par M. Rizzi-Zannoni de la Societé Royale de Gottingue Professeur de Géographie. Folha XIV A 8. 

 

No mapa está apontado o trajecto da navegação de cabotagem, de sul para norte, entre a Figueira e o Porto.

 

 


fig. 24 - Pormenor do Mapa de Rizzi Zannoni.

 

 

Saindo da Figueira da Foz a embarcação dirigindo-se para Norte, ao longo da costa, passaria por duas povoações litorais existentes na época.

 

Mira

No mapa está representada a Vila de Mira, mas não a Praia de Mira a qual, apenas no início do século XIX, se irá desenvolver como aldeia de pescadores, com a construção dos conhecidos palheiros.

 


fig. 25 - Pormenor do Mapa de Rizzi Zannoni.

 

De facto, Palheiros de Mira apenas é referida por João Maria Baptista em 1875 a propósito de Mira na sua Chorographia Moderna do Reino de Portugal.

“Mira - Está sit. em logar plano na extremidade de um grande areial que a separa do Oceano, de que dista para E. 6K. Tem estr.as para Cantanhede, para Buarcos e Figueira, e para Palheiros de Mira na praia do mar. Dista de Coimbra 10l para N.0.”  [1]

 


[1] João Maria Baptista (1817-1887), coronel de artilharia reformado, coadjuvado por seu filho João Justino Baptista de Oliveira (1854-1919), Chorographia Moderna do Reino de Portugal (1874-79), Volume III, Typographia da Academia Real de Sciencias. Lisboa 1875. (pág.269).

Aveiro

Com outo destaque surge no mapa Aveiro, assinalada como Nueva Bragança ô Aveiro, denominação resultante do conflito entre a casa de Bragança e a Casa de Coimbra.

 


fig. 26 - Pormenor do Mapa de Rizzi Zannoni.

O porto de Aveiro, onde em caso de necessidade, já era possível fazer escala, cuja barra então aberta (3 de Abril de 1808), segundo os estudos e projectos de Reynaldo Oudinot (1747-1807) e de Luís Gomes de Carvalho (1771-1826). As obras de consolidação prolongaram-se, contudo, ao longo do século XIX.

À Barra de Aveiro e a esses engenheiros se refere o poeta António Feliciano de Castilho:

 

“Arduas fadigas, derramadas sommas

Ao Vouga nunca destruir podérão

A barreira, que entrada ao mar tolhia: (32)

Em Teus dias, Senhor, um Genio grande,

(O preceito foi Teu, é Tua a glória) (33)

As cadeias quebrou, que o Rio atavão.

Surge, e bramando presuroso corre,

Chega ao Tridente do feróz Neptuno,

Corre a abraçar a graciosa Thetis: (34)

Nem mais soberbo discorria outr'ora

Pelos campos Ideos o vasto Xanto,

Quando amou de Neera o lindo rosto.

 Não fuja aos versos meus, á fama, á gloria

O nome d'Oudinot, que o sabio Plano

Deo qual déste tambem, qual desempenhas

Engenhoso Carvalho em nossos dias”.  [1]

 

António Feliciano de Castilho aponta no seu poema uma séria de notas explicativas dos versos.

Na nota 32, narra as tentativas, desde 1756 aos finais do século, para abrir a Barra de Aveiro - “onde não podia entrar , nem saír o mais pequeno barco, o que tinha reduzido os seus habitantes a grande pobreza, e miséria” - quer pela criação de impostos, quer pelo planeamento de que foram encarregados inicialmente os engenheiros militares Carlos Mardel (1695-1763) em 1756, e em 1758 Francisco Joaquim Polchete (Jean- François Hyacinth Polchet 1726-1782) e Luiz d'Alincourt (?-?) e ainda Francisco Xavier do Rego (?-?) mas de onde “nada resultou”. Sucederam ainda novas tentativas para que foram chamados outros engenheiros, mas também nada se adiantou.

 

Na nota 33 Feliciano de Castilho refere que em 1802 encarregam-se de planear a barra de Aveiro os engenheiros Reynaldo Oudinot e Luiz Gomes de Carvalho (1771-1826). Como em Outubro de 1803 “Oudinot foi chamado a Lisboa, para ir á Ilha da Madeira em Serviço, onde faleceo em Fevereiro de 1807”, foi Carvalho encarregado inteiramente das Obras da Barra d'Aveiro , e do Porto, as quaes presentemente está dirigindo.”

Finalmente a nota 34, noticia a abertura em 3 de Abril de 1808 da nova Barra de Aveiro e que nos anos seguintes se procedeu às “reedificações, limpeza, e ampliações no Caes antigo d'Aveiro para maior commodidade da Navegação, Commércio, e belleza da Cidade”

 

 

fig. 27 - Marino Miguel Franzini (1779-1861),Planta da Nova barra de Aveiro 1808. Pormenor adaptado da Carta geral que comprehende os planos das principaes barras da costa de Portugal a qual se refere a carta reduzida da mesma costa / construída por Marino Miguel Franzini Manjor do Real Corpo de Engenheiros; A. Arrowsmith, Hydrographer to H. R. H. the Prince of Wales. - Escalas [ca 1:29000]-[ca 1:150000]. - London, N.º 10 Soho square: A. Arrowsmith, 1811. - 1 mapa : gravura, p&b ; matriz: 64,30x80,50 cm, em folha de 66,50x83,50 cm. BND.



fig. 28 - Luís Gomes de Carvalho (1771-1826), Mappa da Ria de Aveiro para intelligencia do plano da abertura da nova barra / por Luiz Gomes de Carvalho; sculp. Queiroz. - Escala [ca 1:59000], 3000 Braças = [11,20 cm]. - [Lisboa: na Impressão Regia, 1813]. - 1 mapa: gravura, p&b; 23,70x67,20 cm. em folha de 26,60x69,50 cm. 1811.


[1] António Feliciano de Castilho (1800-1875), in A faustissima exaltação de sua magestade fidelissima o senhor D. João VI ao throno: poema..., Na Impressão Régia, Lisboa 1818, (Canto II, versos 130 a 145, pág. 20).


A Pedra dit Saureira (Pedra de Assoreira), e a capela do Senhor da Pedra

Perto do Porto aparece referenciada nos mapas da época, como o de Rizzi Zannoni, a “Pedra dit Saureira” (Pedra de Assoreira), um rochedo sobre o qual foi edificada a capela da Senhora da Pedra.

 


fig. 29 – Pormenor do Mapa de Rizzi Zannoni.

 

A Pedra da Assoreira

O rochedo isolado sempre foi um símbolo de força e solidez. Um rochedo é inamovível, indestrutível e inabalável já que não treme nem se agita perante o murmúrio do mar ou o invisível sopro do vento, e mesmo perante o ruidoso bramir das violentas tempestades, e das impetuosas refregas de vento, permanece sempre, soberanamente, calmo e seguro.

O rochedo junto ao mar, nascendo da terra, é símbolo de permanência, de fixação e de estabilidade, face às areias da praia e à espuma das ondas, cujas de formas efémeras sempre se vão transformando.

É a Grande Pedra, que ao sol e junto ao mar, junta os 4 elementos: Terra, Água, Ar e Fogo.

Nele habita um genius locus, com quem se identifica o povo com os seus valores e costumes, crenças e desejos.

A Pedra da Assoreira está ainda assinada, segundo o povo, por uma misteriosa pegada de boi gravada na pedra. Pegada essa, que é indelével, ao contrário das efémeras pegadas que nas areias da praia, rapidamente se apagam pela acção do vento e do mar.

O Boi

Será que o povo terá visto nessa marca a pegada do boi alado que acompanha São Lucas?

Nas representações simbólicas dos quatro evangelistas, São Lucas é representado acompanhado por um boi, muitas vezes com asas, como emblema do mais alto sacrifício oferecido no Templo de Jerusalém.

O boi acompanhando São Lucas é presença constante na pintura dos séculos XV e XVI, em que o santo, como artista, retrata a figura da Virgem.

Seguindo uma pintura atribuída a Rafael, muitos outros artistas do Maneirismo [1] realizaram pinturas semelhantes, das quais escolhemos um fresco de Giorgio Vasari, pela clara representação do boi alado.


fig. 30 - Giorgio Vasari (1511-1574), São Lucas pintando o retrato da Virgem, ca.1565, fresco Capela de São Lucas, Basílica da Anunciação de Maria, Florença.

 

Além disso, o boi também é símbolo da paciência e da força, virtudes demonstradas pela vida e pela obra de São Lucas.

Animal tranquilo e robusto, trabalhador incansável puxando carros, noras e arados como nos versos de Afonso Lopes Vieira (1878-1946) Os Animais Nossos Amigos (1911) que gerações de crianças aprenderam na instrução primária. [2]

 

“Vede os bois a puxar, pelas estradas,

aquelas pesadíssimas carradas.

 ……………………………….. 

Vede o boi a puxar à velha nora,

que parece também que chora, chora...

 ……… .......................................

Vede os bois a puxar ao arado, agora

que o lavrador conduz pelo campo fora!”  [3]

 

E ainda nas nossas praias puxando esforçadamente barcos e redes de pesca na arte da xávega praticada a partir de meados do século XVIII.



[1] Rafael Sanzio (1483-1520), Marten Jacobsz Heemskerk van Veen (1498-1574),), Martin De Vos (1532-1603), Domenico Cresti Passignano (1559-1638), Giovanni Francesco Barbieri Guercino (1591-1666).

[2] Afonso Lopes Vieira (1878-1946), “Os Bois” in O Livro da Terceira Classe, do Ministério da Educação Nacional, Ed. Domingos Barreira, 4.ª ed., Porto 1958, (pág.169-170)

[3] Afonso Lopes Vieira (1878-1946), Animais Nossos Amigos. Ilustrações de Raul Lino. Edições Cotovia Lisboa 1911. 


A Capela do Senhor da Pedra


“Todo aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática

é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha.

Caiu a chuva, vieram as torrentes e sopraram os ventos contra aquela casa;

mas ela não caiu, porque estava fundada sobre a rocha.” 

Mateus 7:24

 

“…e sobre esta pedra edificarei a minha igreja,

e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;”

 Mateus 16:18

 

 Desta eloquência do Lugar, deste rochedo que marca e centraliza todo o espaço, se compreende que, desde sempre, a Pedra de Assoreira fosse sacralizada e investida de poderes mágicos, conduzindo, seguindo Mateus, à edificação de um templo ancorado sobre este sólido e mágico penedo.

 


fig. 31 – Postal do início do séc. XX. Capellinha do Senhor da Pedra – Gulpilhares, Gaia.

 

Sobre a história da capela do Senhor da Pedra é incontornável um artigo de Manuel Joaquim Moreira da Rocha, publicado em 1993 na revista Poligrafia, intitulado “Fundação da Capela do Senhor da Pedra em Gulpilares: Um espaço centralizado junto ao mar” que, na parte inicial, esclarece a data da construção da capela e a razão porque não aparece na cartografia dos finais do século XVIII. [1]

Para isso, cita as Memórias Paroquiais de 1758 onde se refere o rochedo, e nada constando sobre a capela. O pároco propunha, inicialmente, a construção de um forte sobre o rochedo.

“…na praia do Mar da parte do poente, aonde tem na mesma praia hum grande pedra chamada a pedra da Asureira; desta pedra se descobrem os castelos de Sam João da Foz e do Queijo e Mathosinhos e nella se pode fazer hum fortim que defende esta costa do mar athe barra do Porto, porque as ballas de artelharia do Castello de Sam Joaõ da Fos e as que podem por este fortim suficientemente podiam defender o âmbito permeio de huma e outra distancia”. [2]

 

E ainda segundo Manuel Joaquim Moreira da Rocha, citando o Arquivo Histórico do Paço Episcopal do Porto, “Em 1763 o Pároco de Santa Maria de Gulpilhares Francisco Caetano de Sousa Sarmento, inicia os “Autos de Patrimonio para fabrica da Capella do Senhor da Pedra cita no Pinhasco da Asssoreira, freguesia de Santa Maria de Golpilhares da Comarca da Feira deste Bispado.”  [3]

Para a edificação da capela o seu autor irá utilizar o rochedo compreendendo a sua presença, não fazendo dele um obstáculo, mas aceitá-lo para nele solidamente habitar, como a proa de um navio face a esse mar por vezes violento.

O filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980), para fundamentar e ilustrar o conceito de situação [4]- o modo em que cada um afirma a sua posição, o seu estar-no-mundo, com as achegas e os obstáculos que esse mundo é, ou vai sendo, e nos vai condicionando no nosso projecto pessoal - utiliza como exemplo o rochedo.

 “Tel rocher, qui manifeste une résistance profonde si je veux le déplacer, sera au contraire, une aide précieuse si je veux l’escalader pour contempler le paysage. En lui-même – s’il est possible d’envisager ce qu’il peu être en lui-même - il est neutre, c’est a dire qu’il attend d’être éclairé par un fin pour se manifester comme adversaire ou comme auxiliaire.”  [5]

[Aquele rochedo, que mostra uma profunda resistência se eu o quiser mover, será ao contrário, uma ajuda preciosa se eu o quiser escalar para contemplar a paisagem. Em si mesmo - se for possível imaginar o que pode ser em si mesmo - é neutro, isto é, ele espera ser esclarecido por um meu objectivo para se manifestar como adversário ou como auxiliar.]

Esta forma sartriana de encarar o rochedo é, nos anos 50 do século XX, adoptada por Álvaro Siza na concepção da Casa de Chá da Boa Nova, para quem o projecto “c’est une réponse à un problème concret, à une situation en transformation à laquelle je participe sans fixer à l’avance un langage architectonique, parce que mon travail est simplement une participation dans un mouvement de transformation qui a des implications beaucoup plus larges.” [6]

[é uma resposta a um problema concreto, a uma situação em transformação da qual participo sem fixar antecipadamente uma linguagem arquitectónica, porque o meu trabalho é simplesmente uma participação num movimento de transformação que tem implicações muito mais amplas.]

 

 Assim, em 1817 quando Manoel Fernandes Thomaz se deslocou para o Porto, a Capela estava já construída e mantinha-se a tradição de no último Domingo do mês de Maio, se realizar a grande romaria que “transformavam o areal num extraordinário acampamento cheio de bulício, de tendeiros, de carroças e char-à-bancs, de grupos anichados à roda dos farnéis, de lavadeiras e moços do campo e de muita gente da cidade de mistura.” [7]

A romaria do Senhor da Pedra um século mais tarde.

 


fig. 32 - Em Miramar – A Capela do Senhor da Pedra em dia de Arraial. (Clichés d’um outro distinto amador, o sr. Manuel Ildefonso da Cunha Pacheco). In Illustração Portugueza, n.º 697, Lisboa 30 de Junho de 1919.

Acrescentado em 28 de Janeiro de 2021

fig. 33 - Miramar – Revista de Turismo vol. VIII n.º 135 Setembro de 1923.






[1] Manuel Joaquim Moreira da Rocha, Fundação da Capela do Senhor da Pedra em Gulpilares: um espaço centralizado junto ao mar. in Separata da revista Poligrafia n.º 6 1997 do Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandão.

[2] Francisco Barbosa da Costa, Memorias Paroquiais de Vila Nova de Gaia 1758. Col. “Documentos sobre Vila Nova de Gaia II” in Gabinete de História e Arqueologia e Câmara Municipal,1983. (pág..77). Citado por Manuel Joaquim Moreira da Rocha

[3] Manuel Joaquim Moreira da Rocha, Fundação da Capela do Senhor da Pedra em Gulpilares: um espaço centralizado junto ao mar. in Separata da revista Poligrafia n.º 6 1997 do Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandão. (pág. 64).

[4] “Il n'y a de liberté qu'en situation et il n'y a de situation que par la liberté. La liberté humaine rencontre partout des résistances et des obstacles qu'elle n'a pas crées; mais ces derniers n'ont de sens que dans et par le libre choix qu'est la liberté humaine.”

[Só há liberdade em situação e só há situação através da liberdade. A liberdade humana, por toda a parte, encontra resistências e obstáculos que não criou; mas estes apenas têm sentido na e pela livre escolha que é a liberdade humana.]

Jean Paul Sartre (1905-1980), L'etre et le néant, essai d'ontologie phénoménologique, Paris, Gallimard, 1943, (pág.546)

[5] Jean Paul Sartre (1905-1980), L'etre et le néant, essai d'ontologie phénoménologique, Paris, Gallimard, 1943, (pág.527).

[6] Álvaro Siza, Entretien avec Álvaro Siza in Architecture Mouvement Continuité AMC, n.º44 1978.

[7] Sant’Anna Dionísio, Guia de Portugal (1964). 4º Volume, Entre Douro e Minho. I. Douro Litoral. 3ª edição Fundação Calouste Gulbenkian 1994. (pág. 82).


CONTINUA

4º episódio - A difícil barra do Porto

 

 

 

 

1 comentário:

  1. Espectacular!
    Elementos interessantes a acrescentar à história do concelho da Figueira da Foz.
    Joaquim Moreira - Figª da Foz

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