A janela e a condição da mulher
“Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada…
“ [1]
João Cabral de Melo Neto
1 - O tema da figura feminina junto
da janela atravessa toda a história da pintura.
E na pintura do século XIX o tema
da mulher junto de uma janela é um tema frequente e com um particular significado.
fig. 1
E se desde sempre o interior da
casa foi considerado o universo feminino e nele as actividades associadas:
tarefas domésticas, educação infantil, conversação (possivelmente confidencial);
e na melhor das hipóteses, a possibilidade de expressar talentos artísticos,
desde o bordado à prática da música ou do desenho, passando pela decoração da
casa…
Na época vitoriana esta realidade
sociológica assumiu, nos meios burgueses, quase um estatuto de regra
inviolável.
[1] João Cabral de Melo Neto (1920-1999), in A educação pela pedra e depois, Editora
Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.
2 - Esta condição da mulher parece retratada
numa pintura de Gustave Caillebotte que coloca
uma mulher de costas olhando para o exterior através de uma janela. [1]
fig. 2 - Gustav Caillebotte, L’intérieur 1880, óleo s/tela 116 x 89 cm. Col. Particular.
O crítico de arte Joris Karl Huysmans (1848-1907), escreveu sobre este quadro, comentando a Exposição dos Independentes de 1880. Considerando-o uma obra-prima, salientava “la vie de cette scène”, confirmando esse pobre estatuto concedido à mulher.
“Uma senhora vira as costas para nós, de pé em uma janela, e um
cavalheiro, sentado num cadeirão, visto de perfil, lê o jornal ao seu lado -
isso é tudo; - mas o que é realmente bonito é a franqueza, é a vida dessa cena!
A mulher que olha, ociosa, a rua, palpita, mexe-se; vemos as suas ancas
moverem-se sob o maravilhoso veludo azul-escuro que as cobre; vamos tocá-la com
o dedo, ela vai bocejar, virar-se, trocar uma conversa inútil com o marido,
distraído pela leitura da notícia de um fait-divers.
Esta suprema qualidade da arte, a vida, emerge desta tela com uma
intensidade verdadeiramente incrível; e se já falei da luz, no início deste
artigo; é aqui que é se deve vê-la, a luz de Paris, num apartamento situado
voltado para a rua, a luz abafada pelos vidros das janelas, e peneirada pela
musselina das pequenas cortinas.
No fundo da composição, na encruzilhada pela qual o dia se estende,
vê-se a casa em frente, as grandes letras douradas que a indústria faz rastejar
nos balaústres das varandas, nos apoios das janelas, neste abertura para a
cidade. O ar circula, parece que o rolar surdo dos carros vai subir com o
barulho dos transeuntes batendo na calçada, lá em baixo. É um momento da
existência contemporânea fixado tal como é.
O casal está entediado, “como muitas vezes acontece na vida; um cheiro
de um casal em uma situação de dinheiro fácil, escapa-se deste interior.” [2]
Mas o quadro tem ainda outras
leituras. A mulher, que olha para o edifício do outro lado da rua, está de facto
a ver uma figura que surge espreitando de uma das janelas.
fig. 3 – Pormenor da figura anterior.
Nesta época a atribuição da casa ao universo feminino, ao confinar a mulher ao espaço doméstico, dava-lhe apenas muito limitadas possibilidades de sair e realizar sempre ou quase sempre sob vigilância.
Quanto ao homem, o exterior era o
seu domínio. Para ele, era o lugar das actividades profissionais, mas também o
lugar de aventuras, do jogo ou do lazer, das cavalgadas e caçadas, da prática de armas e
no limite da guerra.
Por
isso Caillebotte coloca na pintura a figura do marido, distraído na leitura de
um jornal, na época o principal meio de comunicação com a vida na cidade e no
mundo.
A partir dessa bipolaridade resultam para a mulher múltiplas narrativas possíveis, dentro das quais a janela intervém como ponto de encontro, um desejo de fuga e transgressão, quer se concretize ou apenas seja imaginado.
[1] Compare-se com a pintura de Caillebote,“jeune
homme à la fenêtre”, do texto anterior.
[2] Joris Karl Huysmans (1848-1907), Exposition des Indépendants en 1880, in L’Art Moderne, Librarie le Plon Les petits-fils de Plon et Nourrit, imprimeurs-éditeurs 8 rue Garancière 6e. 1883, Paris 1883. (pág.107 a 109).
[Une dame nous tourne le dos, debout à une fenêtre, et un monsieur, assis sur un crapaud, vu de profil, lit le journal auprès d'elle, — voilà tout — mais ce qui est vraiment magnifique, c'est la franchise, c'est la vie de cette scène ! La femme qui regarde, désœuvrée, la rue, palpite, bouge ; on voit ses reins remuer sous le merveilleux velours bleu sombre qui les couvre ; on va la toucher du doigt, elle va bâiller, se retourner, échanger un inutile propos avec son mari à peine distrait par la lecture d’un fait-divers. Cette qualité suprême de l'art, la vie, se dégage de cette toile avec une intensité vraiment incroyable, puis, j'ai parlé de la lumière, au commencement de cet article ; c'est ici qu'il faut la voir, la lumière de Paris, dans un appartement situé sur la rue, la lumière amortie par les tentures des fenêtres, tamisée par la mousseline des petits rideaux. Au fond de la scène, par la croisée d'où s'épand le jour, l'œil aperçoit la maison d'en face, les grandes lettres d'or que l'industrie fait ramper sur les balustres des balcons, sur l'appui des fenêtres, dans cette échappée sur la ville. L'air circule, il semble que le sourd roulement des voitures va monter avec le brouhaha des passants battant le pavé, en bas. C'est un coin de l'existence contemporaine, fixé tel quel. Le couple s'ennuie, comme cela arrive dans la vie, souvent ; une senteur de ménage dans une situation d'argent facile, s'échappe de cet intérieur.]
O tédio feminino
3 - A Emma de “Madame Bovary” de Flaubert [1] ou
a Luiza de “O primo Bazilio” de Eça
de Queiroz [2], representam
bem essa mulher casada, na esquina dos séculos XIX e XX, fechadas em casa no
seu tédio quotidiano, e onde a janela é o sítio privilegiado para o devaneio e
o sonho de liberdade ou libertação, no limite através do adultério.
fig. 4 – Alfred Stevens (1823-1906), Mélancolie
1876, óleo s/painel 76,8 x 54,6 cm. Col. particular.
A janela, abre e une ao mundo, rompendo
esse espaço doméstico e fechado.
E se é um obstáculo, também incita ao devaneio, desta ausência onde ela se encontra até àquela presença onde ela se sonha e imagina…
Por isso essas personagens estavam predispostas a imaginar a sua existência nessa vida agitada e elegante das grandes cidades: Emma “comprou um mapa de Paris e, com a ponta do dedo, na planta fazia passeios pela capital.” [3];
Luiza “…ambicionava um coupé; e queria viajar, ir a Paris, a Sevilha, a Roma…” [4].
É o que sonham e é para onde querem escapar, fugindo à banalidade e ao quotidiano em que de tédio se definham…
Em Madame de Bovary, Flaubert descreve esse énnui, esse vazio, em que Emma passa os dias.
“O seu coração, mais uma vez, permaneceu vazio, e assim a série de dias iguais recomeçou. Sucederam-se em sequência, sempre idênticos, incontáveis e sem nada trazer! Outras vidas, por mais monótonas que fossem, tinham pelo menos a hipótese de um acontecimento. Uma aventura trazia, por vezes, infindáveis peripécias, e a paisagem mudava. Mas, para ela, nada acontecia. Era a vontade de Deus! O futuro era um corredor completamente escuro, com uma porta fechada no final. Ela desistiu da música; para quê tocar? Quem a ouviria? (...) Deixou as suas pranchetas e a tapeçaria no armário. Para quê? Costurar irritava-a. - Já li tudo, dizia para si mesma. E ficava ali, ou a sujar as pinças de sangue, ou a olhar a chuva a cair.” [5]
E é o próprio Eça de Queiroz que justifica as suas personagens Luiza e Bazilio, escrevendo a propósito do seu romance:
“No Primo Bazilio, que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa; — a senhora sentimental, mal-educada, nem espiritual (porque cristianismo já a não tem; sanção moral da justiça, não sabe a que isso é), arrasada de romance, lírica, sobrexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc., etc. — enfim a burguesinha da Baixa; por outro lado o amante — um maroto, sem paixão nem a justificação da sua tirania, que o que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e amor grátis;…” [6]
Desses encontros irão resultar os enredos
dos dois romances e significativamente a morte das duas personagens femininas.
fig. 5 - Georg Friedrich Kersting (1785-1847), Paar am Fenster 1815, óleo s/tela 47 x 37 cm. Col. Particular.
fig. 6 - Carl Vilhelm Holsøe (1863-1935), A woman
at a sunny window s/d, dimensões desconhecidas. Col. particular.
E Frederico Garcia Lorca descreve esta mulher prisioneira na sua própria casa olhando através da janela.
« …A imensa tristeza que flutua nos seus olhos
diz-nos
a tua vida quebrada e fracassada,
a
monotonia da tua envolvente empobrecida,
vendo
passar gente desde a tua janela,
ouvindo
a chuva cair sobre a amargura
dessa
velha rua provinciana,
enquanto
ao longe soam os clamores
turvos
e confusos de uns campanários… » [8]
fig. 7
[1] Gustav Flaubert (1821-1880), Madame Bovary Mœurs de province,
Librairie de France, Paris,1929.
[2]
Eça de Queiroz O Primo Basílio. Episódio domestico. Segunda Edição Livraria
Internacional de Ernesto Chardron Porto 1878.
[3] Gustav Flaubert (1821-1880), Madame Bovary Mœurs de province,
Librairie de France, Paris,1929. (pág. 120).
[ s’acheta un plan de Paris, et, du bout
de son doigt, sur la carte, elle faisait des courses dans la capitale.]
[4]
Eça de Queiroz O Primo Basílio.
Episodio domestico. Segunda Edição Livraria Internacional de Ernesto Chardron
Porto 1878. (pág.218).
[5] Gustav Flaubert (1821-1880),
Madame Bovary Mœurs de province, Librairie de France, Paris,1929. (pág. 131).
[Son cœur, de nouveau, resta vide, et alors la
série des mêmes journées recommença. Elles allaient donc maintenant se suivre
ainsi à la file toujours pareilles, innombrables, et n’apportant rien ! Les
autres existences, si plates qu’elles fussent, avaient du moins la chance d’un
événement. Une aventure amenait parfois des péripéties à l’infini, et le décor
changeait. Mais pour elle, rien n’arrivait. Dieu l’avait voulu ! L’avenir était
un corridor tout noir, et qui avait au fond sa porte bien fermée. Elle
abandonna la musique, pourquoi jouer ? Qui l’entendrait ? (…) Elle laissa dans
l’armoire ses cartons à dessin et la tapisserie. À quoi bon ? La couture
l’irritait. – J’ai tout lu, se disait-elle. Et elle restait à faire rougir les
pincettes, ou regardait la pluie tomber.]
[6] Eça de Queiroz, Carta a Teófilo Braga,
Newcastle 12 de Março de 1878. In Correspondência Ed. Livros do Brasil
Lisboa 2000 (pág.35).
[7] Julien Green (1900-1998), Adrienne Mesurat (1927), in Œuvres
complètes I, Bibliothèque de la Pléiade Gallimard, Paris 1972. (pág. 306).
[s’asseyait dans un grand fauteuil, au salon, et la tête tournée vers la fenêtre, les mains croisées sur ses genoux, elle restait ainsi une heure et comme absorbée par quelque chose qu’elle voyait dans le ciel.]
[8] Federico García Lorca
(1898-1936), Elegia. Diciembre de
1918 (Granada) in Obras
Completas, Aguilar S.A. Ediciones, Juan Bravo 38, Madrid 1969. (pág.203).
[ “…La
tristeza inmensa que flota en tus ojos
nos dice
tu vida rota y fracasada,
la
monotonía de tu ambiente pobre
viendo
pasar gente desde tu ventana,
oyendo
la lluvia sobre la amargura
que
tiene la vieja calle provinciana,
mientras
que a lo lejos suenan los clamores
turbios
y confusos de unas campanadas…” ]







Muito interessante. Boa noite!
ResponderEliminar