segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Janelas 2

 

A janela entre dentro e fora

 

 

On perce des portes et des fenêtres pour faire une maison.

C’est de leur vide que dépend l’usage de la maison.

Lao Tse [1]

 

A janela não é, nunca é um simples buraco na parede.

 


fig. 1 - Le Corbusier (1887-1965), Villa Le Lac 1923/24, lago Leman Suisse.

 

Assim o entendeu Le Corbusier quando na Villa Le Lac, que projectou em 1923, criou este recanto, com um muro onde abriu uma janela com vista para o lago, lembrando o soneto de Alberto de Oliveira.

“É um velho paredão, todo gretado,
Roto e negro, a que o tempo uma oferenda
Deixou num cacto em flor ensangüentado
E, num pouco de musgo em cada fenda.
Serve há muito de encerro a uma vivenda;
Protegê-la e guardá-la é seu cuidado;
Talvez consigo esta missão compreenda,
Sempre em seu posto, firme e alevantado...” 
[2]

 

Álvaro Siza desenhou esta mesma janela da Villa Le Lac vista do interior do recinto.

fig. 2 - Álvaro Siza desenhando na Villa Le Lac. 1981. Apuntes de Proyectos 1, Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Sevilla


O problema que se põe ao fazer uma abertura é conseguir criar um espaço que seja habitável e habitado, um espaço feliz na relação entre o interior e o exterior, entre o artificial e o natural, entre o fechado e o aberto.

E a janela é o elemento fundamental de ligação visual entre o interior - o estar dentro (dedans); e o exterior - o estar fora (dehors).

Ao olhar pela janela acede-se ao mundo exterior, mas, ao mesmo tempo, ela permite ou impede que alguém devasse a intimidade doméstica penetrando no interior.

Assim a janela separa radicalmente esses dois mundos, esses dois espaços: público e privado, mundano e íntimo, multidão e solidão, ruído e silêncio, frio e calor…

 

 Gaston Bachelard ao desenvolver a fenomenologia do dehors e do dedans, considera que a janela, como limite entre estas duas intimidades, tem sempre dois lados que se podem sempre trocar.

“O exterior e o interior são os dois íntimos; estão sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade. Se existe uma superfície como limite entre um interior e um exterior, essa superfície é dolorosa dos dois lados.” [3]

E René Magritte pinta um quadro intitulado l’éloge de la dialectique (o elogio da dialéctica) que justifica:

"Para a casa, mostrei através da janela aberta na fachada de uma casa uma divisão que continha uma casa. É o elogio da dialéctica."  [4]



    fig. 3 - René Magritte L'éloge de la dialectique 1937, oil on canvas, 65.5 × 54.0 cm National Gallery of Victoria, Melbourne


Na iconografia católica a janela separa o sagrado do profano.

No Altar de Pesaro, o painel central mostra por trás das figuras de Cristo e da Virgem, acompanhadas dos Santos, uma janela que se abre para uma povoação fortificada.

 


fig. 4 - Giovanni Bellini (c. 1430-1516), Coroação da Virgem do Altar de Pesaro 1474, óleo s/painel 262 × 240 cm. Musei Civici Pesaro.

 

E a janela pode ainda separar o Bem do Mal, o Santo do Demónio, a pureza da tentação.

Como no Painel lateral do retábulo de Issenheim, de Grünewald (1475/80-1528), onde junto da figura de Santo Antão surge na janela de vidros de “fundo de garrafa” o Demónio que depois de vencido, não deixou de lhe colocar armadilhas. Ele rondava à sua volta como um leão à procura da oportunidade de surpreender a sua presa.” [5]

 


 fig. 5 - Mathis Gothart Nithart dit Grünewald (1475/80-1528), Santo Antão e o Demónio. Pormenor do Painel lateral (232 x 75 cm.) do Le Retable d'Issenheim, 1512-1516. Óleo e têmpera sobre madeira de tília, 3,30 x 5,90 m. Musée d'Unterlinden, Colmar. França.

 



[1] Lao Tse (604-517 a.C.), Tao Te King Le Livre de la Voie et de la Vertu. Traduction Stanislas Julien (1797-1873). A l’Imprimerie Royale, Paris 1842. (Cap.11 pág.38). [Abrimos portas e janelas para fazer uma casa. É do seu vazio que depende o uso da casa.]

 [2] Alberto de Oliveira (1857-1937), de Alma Livre (1898-1901) in Poesias, segunda série 1892-1903, Livraria Garnier, 109 rua do Ouvidor, Rio de Janeiro 1912. (pág. 123).

[3] Gaston Bachelard (1884-1962), La Poétique de l’Espace (1957). Les Presses universitaires de France, 3e édition, Paris 1961. (pág. 243). [L'en dehors et l'en dedans sont tous deux intimes; ils sont toujours prêts à se renverser, à échanger leur hostilité. S'il y a une surface limite entre un tel dedans et un tel dehors, cette surface est, douloureuse des deux côtés.]

[4]  René Magritte [Pour la maison, je fis voir par la fenêtre ouverte dans la façade d’une maison une chambre contenant une maison. C’est l’éloge de la dialectique.]

[5] Vie de Saint Antoine par Saint Athanase. Traduction littérale du texte grec par M. Charles De Rémondage. Imprimerie Émile Protat. Macon 1874. (pág.15). [...après avoir vaincu le démon, Antoine ne se relâcha pas, et le démon, après sa défaite, ne cessa pas de lui dresser des embûches. Il rôdait autour de lui comme un lion cherchant l'occasion de surpendre sa proie.]

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